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Agenda Cultural Mandela Vive debate literatura produzida em periferias

Menina falando no microfone

18/12/2017

Por: Luiza Gomes (Cooperação Social da Fiocruz)

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“O espírito de Mandela vive em nós”, afirmou Elizabeth Campos, coordenadora do Espaço Casa Viva – empreendimento social da RedeCCAP, há 30 anos atuante em Manguinhos. As palavras da liderança, nos momentos iniciais da Agenda Cultural Mandela Vive, na última segunda-feira (11/12), aludem ao momento de resistência ao desmonte de políticas sociais no país e na cidade do Rio de Janeiro. O evento ocorreu na Biblioteca Parque de Manguinhos, que está há 12 meses ameaçada de encerrar suas atividades. A agenda conta com apoio da Cooperação Social da Fiocruz (através do programa de Promoção de Territórios Urbanos Saudáveis), da Sociedade de Promoção da Casa de Oswaldo Cruz (SPCOC), com o patrocínio da Fiotec e da Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro.

Iniciativa da RedeCCAP com curadoria do Ecomuseu de Manguinhos, a Agenda Cultural Mandela Vive acontece desde 2015 no território de Manguinhos, e vem elegendo o Parque Cívico (ou Praça do DSUP) como um dos espaços cativos para realização de suas atividades. Este ano, o grupo Música na Calçada apresentou seu repertório dentro da sala de cinema Eduardo Coutinho – primeiro cinema de Manguinhos, com capacidade para 202 pessoas. Em seguida, o 3º Seminário Literatura no Dente apresentou o debate sobre o humor na literatura negra e periférica. A programação também contou com uma apresentação do coletivo Hip Hop Saúde, roda de rima freestyle, e da banda Tritura.

Foto: Thiago Antunes (Flamingo Filmes)

3º Seminário Literatura no Dente

“Podemos falar das nossas histórias, das opressões vividas nas periferias, sem a marca da tragédia? É possível que, com as ferramentas do humor, essas narrativas que vêm de lugares de periferias circulem de outra forma?”, inquiriu Felipe Eugênio, coordenador do Ecomuseu de Manguinhos, na abertura do seminário. Na última segunda-feira, a Agenda Cultural Mandela Vive inaugurou seu calendário 2017-2018. A mesa de debate Fale ao motorista apenas o indescritível - As estratégias do humor na combativa literatura negra convidou as escritoras Janaína Abílio e Sirléa Aleixo - autoras participantes da primeira residência literária da Agenda, em 2015; Juliana Correia, arte-educadora no projeto Baobazinho, que ensina literatura africana e afro-brasileira para crianças; e Álvaro Marins, professor de literatura especialista em Machado de Assis e Lima Barreto.
Sirléa Aleixo, atriz e integrante do coletivo artístico Manguinhos em Cena, apresentou duas experiências cênicas relacionadas ao tema da mesa: com o texto Mariana Criola, de autoria do diretor Ricardo Vassíllievitch, que narra a insurreição da escrava que formou um Quilombo em Vassouras, interior do Rio de Janeiro, ao lado de Manoel Congo; e com a comédia melodramática Sintonia suburbana, de autoria coletiva e assinado pela dramaturga Renata Mizrahi.

Nessa última, remoções de moradores de favelas, imobilidade urbana, tiroteios, racismo e outras violações são tratadas de forma crítica e cômica. “No humor você leva a informação, mas não tanto a dor. A pessoa ri, entendendo a questão, mas não fica se sentindo mal”, explicou.

O percurso do humor na história da literatura mundial e brasileira foi o tema da fala de Álvaro Marins, professor e autor do livro Machado de Assis e Lima Barreto: da ironia à sátira. Ele apresentou a ironia, sátira e as caricaturas como ferramentas cômicas da linguagem, e estas, como meios úteis à crítica social no universo literário.


Foto: Thiago Antunes (Flamingo Filmes)

“Que tal colocarmos o foco da literatura naquilo que oprime, colocando em cena os mecanismos de nossa sociedade, para desnudá-los?”, questionou.  “Colocar não só a perspectiva de quem é oprimido, mas mostrar como essa sociedade funciona... Do contrário, corremos o risco de ficarmos só na lamentação e sem as possibilidades de entendimento e transformação”, disse.

A inquietação sobre os vazios de representação dos negros e negras na literatura infantil tida “clássica” foi o ponto de partida do projeto Baobazinho, que leva histórias africanas e afro-brasileiras para escolas e creches da rede pública de ensino. Juliana Correia, jornalista, arte-educadora e coordenadora do projeto, que compôs a mesa, é negra e mãe do Francisco, hoje com nove anos.

Com base na Lei 10.639/2013, que tornou obrigatória a inclusão de História e Cultura Africana e Afro-brasileira no currículo de toda a rede de ensino no Brasil, Juliana contou que buscou junto à direção da escola de Francisco um espaço para compartilhar narrativas cujas protagonistas fossem africanas ou negras. O projeto se estrutura na transmissão oral dessas histórias em escolas, creches, favelas e outros territórios da cidade, e vem produzindo modificações na forma das crianças se identificarem e reconhecerem em relação a sua cor e etnia, segundo seu relato.

Dani Ribeiro, uma das participantes do debate pela plateia, trouxe uma experiência semelhante. Como professora de artes de escolas da rede pública, ela propôs aos alunos e alunas de quatro e cinco anos, um trabalho de autorretrato. “Levei um espelho, eles ficaram se olhando e pedi que eles se desenhassem. Cerca de 80% das crianças se desenharam brancas, do cabelo claro, azul, olho azul, verde”, narrou. “Eu ia perguntar, mostrava o espelho e ouvia: “Tia, não posso, não dá pra me desenhar do jeito que eu sou, não me vejo assim”.

A baixa representatividade do negro na literatura, programas televisivos, cinema e outros produtos culturais foi o que mobilizou a fala de Janaína Abílio. “Demorei muito a me reconhecer como escritora. Todas as narrativas que consumimos, quando não nos vemos nelas, em lugar nenhum, é como se aquilo que a gente vive não fosse uma história, fosse alguma outra coisa”.

Literatura e políticas públicas

Segundo Felipe Eugênio, a Agenda Cultural Mandela Vive desenvolve, por meio do Bando Editorial Favelofágico (o braço editorial do Ecomuseu de Manguinhos), um debate sobre a promoção da literatura como direito humano. “É uma discussão sobre literatura e política, ao pensarmos como as classes populares podem também produzir literatura e não só ler. E ainda, de como a literatura que se produz nas periferias, com autores-trabalhadores, pode se sofisticar e entrar no circuito sem perder a criticidade”.

Em 2018, a residência literária terá uma metodologia híbrida: durante 10 meses, no último sábado do mês, pelas manhãs, os editores do Bando Editorial Favelofágico realizarão oficinas abertas ao público sobre as ferramentas do humor na literatura, em Manguinhos, e, à tarde, as oficinas serão direcionadas para a produção escrita de três autores.  Dessa vez, os participantes da residência que escreverão romances. Como resultado, o grupo prepara o lançamento de três romances, editados pela editora sem fins lucrativos.  

“Em 2017, participamos de atividades em encontros e seminários discutindo e conhecendo experiência semelhantes a nossa em diferentes estados brasileiros. São grupos que, em outras capitais brasileiras, realizam resistência territorial através da literatura”, explica Flora Tarumim, editora do Bando. “Nosso futuro como grupo articulado em torno da arte e da cultura com proposta de contribuir para transformação social é formar redes com esses coletivos para facilitar a circulação dessas narrativas que são mantidas encapsuladas nas periferias”, complementa.

Promover ações culturais que sejam estruturantes para um quadro de governança democrática é uma das metas do Programa de Promoção de Territórios Urbanos Saudáveis da Cooperação Social da Fiocruz. A partir da produção de diagnósticos socioterritoriais, o projeto assessora organizações sociais consolidadas no território de Manguinhos e apoia as redes de cultura locais. A Agenda Cultural Mandela Vive é uma das atividades realizadas com a finalidade de mobilizar, produzir reflexão coletiva e estimular a produção de conteúdo crítico no campo da literatura.

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