05/09/2023
Nathalia Mendonça (Cooperação Social da Fiocruz)
A Coordenação de Cooperação Social da Fiocruz, a partir do projeto de Promoção de Territórios Saudáveis e Sustentáveis em Centros Urbanos, promoveu na última terça-feira (28/8) a roda de conversa Favelas, Cannabis Medicinal e Direito à Saúde. O evento reuniu, na Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), um grupo composto por profissionais da área de saúde, alunos e graduados do curso de psicologia, mães de crianças atípicas, militantes de movimentos sociais, lideranças locais dos territórios de favelas, coletivos e servidores públicos para discutir sobre o uso da Cannabis medicinal, tema pertinente nos últimos anos.
O encontro foi realizado a partir da articulação do projeto com o Coletivo SUStenta Cannabis, a Organização Mulheres de Atitude (OMA), o Instituto Kelvin Johnson/Projeto Marias, Educap Alemão, Conselho Comunitário de Manguinhos, CGI Manguinhos; e o Núcleo de Estimulação Estrela de Maria.
A Cannabis e seus derivados têm se mostrado como opções efetivas no tratamento de diversas questões de saúde e quadros médicos como epilepsia, dores crônicas como fibromialgia, artrite e esclerose múltipla, náusea e vômito em pacientes em tratamento de quimioterapia, transtorno de ansiedade, depressão e esquizofrenia. A partir de evidências recentes, também é possível destacar o uso da cannabis medicinal como indicação para o Transtorno do Espectro Autista (TEA), Parkinson, Alzheimer, Síndrome de Tourette, Doença de Crohn, carcinoma, encefalopatia, paralisia cerebral e transtorno de desenvolvimento.
No ano de 2015, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) autorizou o uso medicinal de produtos à base de canabidiol (CDB) e, em 2019, permitiu a venda de medicamentos à base de THC, mediante prescrição médica. A cannabis medicinal pode ser utilizada através do óleo, cápsulas e extratos da planta, no entanto, o acesso é limitado devido ao alto custo dos produtos.
A cannabis medicinal ainda não está disponível para distribuição gratuita aos pacientes, através de sua incorporação no Sistema único de Saúde (SUS). O acesso restrito devido ao preço dos medicamentos limita principalmente a realização do tratamento pelas famílias que não possuem condições financeiras para realizar a compra. Na favela, esse recorte é ainda mais destacado devido às condições econômicas e sociais da população residente nessas localidades.
Pensado como medida de enfrentamento dessas desigualdades, o Núcleo de Estimulação Estrela de Maria (NEEM) foi criado em junho de 2021, no Complexo do Alemão, e realiza o acolhimento de famílias atípicas em favelas, a partir do debate sobre direitos humanos e sobre o uso da Cannabis medicinal. O NEEM doa os medicamentos à base de Cannabis para a população de territórios socioambientalmente vulnerabilizados que precisam do tratamento. Em dois anos de atuação do núcleo, cerca de 400 mães já foram atendidas. O projeto, atualmente, está presente em 114 favelas do estado do Rio de Janeiro, com destaque para as Zonas Norte e Oeste e conta com uma equipe de 32 médicos.
“Essa causa nasce a partir da necessidade da minha filha autista. Toda vez que eu ia no neurologista, cada consulta era 1.000 reais, 800 reais. Passavam remédios controlados e eu não queria isso. Os ativistas da favela levantaram uma vaquinha para eu ir no neurologista, eu descobri o autismo na pandemia. A gente tá na fila do hospital federal da UFRJ até hoje, a Maria vai fazer cinco anos. Eu fui para a linha da medicina integrativa e tive ótimos ganhos, comecei a pesquisar artigos, a traduzir sem saber outro idioma, e cheguei na cannabis e falei: é isso que eu quero para Maria”, conta Rafaela França, fundadora do NEEM, sobre o contexto de nascimento do Núcleo que carrega o nome de sua filha.
Rafaela reforça a necessidade de expansão do debate sobre o uso da Cannabis medicinal para população e profissionais da saúde, desde os Agentes Comunitários de Saúde até aos médicos das unidades, como estratégia de promoção de saúde a partir de uma medicina individualizada, que promova atenção e acompanhamento a partir do uso de novos tratamentos.
“Todo mundo sabe dos desafios impostos pelo tráfico dentro das favelas. Trabalhar com maconha hoje na favela é você sentar com o ilícito e com o lícito. É você dialogar no meio, conversar que é medicinal. Não é fácil, ainda mais para uma mulher. Eu acredito que a nossa autonomia vem como mãe, sendo mãe de uma criança atípica e trazendo qualidade de vida para outras crianças e para outras pessoas. Isso tem legitimado meu trabalho”, pontuou Rafaela sobre as dificuldades do trabalho realizado pelo projeto que já distribuiu mais de 1 milhão e meio de óleos extraídos da Cannabis para as famílias atípicas das favelas.
O NEEM realiza o acolhimento e apoio psicológico às crianças e familiares. As crianças que chegam até o Núcleo passam por consultas gratuitas com médicos voluntários, que fazem a prescrição da Cannabis medicinal, a partir da avaliação dos quadros médicos de cada caso. Após esse acompanhamento, o Núcleo auxilia a família na apresentação da receita à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), para receber a licença que autoriza a importação do remédio.
As ações vão desde doações de medicamentos à base de canabidiol até a realização de programas de educação e conscientização sobre os benefícios da cannabis para a saúde e estrutura social, incluindo oficinas para profissionais da área da saúde que queiram conhecer o projeto. “Eu fiz uma promessa que nenhuma criança da favela ia passar o que eu passei com a Maria e eu tenho cumprido, sendo que a gente precisa de ajuda também”, finalizou Rafaela França.
O Espaço Democrático de União, Convivência, Aprendizagem e Prevenção (EDUCAP), parceiro do NEEM, é uma ONG comunitária também localizada no Complexo do Alemão, Zona Norte do Rio de Janeiro. O EDUCAP atua na promoção de projetos com foco na saúde e educação dos moradores da favela.
Com o objetivo de contribuir com a promoção da cidadania para os moradores do Complexo de Favelas do Alemão e demais contextos populares, a ONG presta acolhimentos às demandas sociais, estimulando a autonomia, a participação comunitária e o desenvolvendo de metodologias em cooperação com as políticas públicas nas áreas de educação, saúde, empregabilidade, lazer e direitos humanos.
Lúcia Cabral, educadora, presidente e fundadora da ONG EDUCAP, ressalta o movimento realizado pelo projeto para acionar a rede local de saúde e potencializar o debate sobre a Cannabis dos espaços locais, dos Colegiados Gestores das unidades do território. “Ter acesso ao óleo é direito do ser humano, dialogar sobre ele também. Mediar com o território o tema “maconha” é muito difícil, foi uma construção bem pensada. É questão de entender que o território de favela é um território criminalizado pelo uso dos entorpecentes, das drogas. A maconha é considerada uma droga, então realmente foi desafiador, mas o importante foi essa rede que se construiu a partir do projeto”.
Durante a troca, retirada de dúvidas e diálogo com mães de crianças atípicas presentes no evento, Lúcia ressaltou: “A gente também tem que começar a retroceder e estudar um pouco da nossa história ancestral para entender que a erva é medicinal e faz parte da nossa vida, por isso que a gente precisa ter esse debate. Esse espaço aqui é de extrema importância”.
A parceria entre o Núcleo de Estimulação Estrela de Maria (NEEM), Espaço Democrático de União, Convivência, Aprendizagem e Prevenção (EDUCAP) e a Fundação Redwood Brasil tem como principal objetivo cuidar da saúde de populações periféricas através da cannabis medicinal, contribuindo para promover qualidade de vida na favela. O projeto interage com os territórios a partir de uma construção coletiva de uma rede de ações a partir da cannabis, considerando as propriedades medicinais, terapêuticas e sociais.
Também esteve presente no evento o coletivo antiproibicionista SUStenta Cannabis, que tem um histórico de facilitador do acesso a consultas médicas e jurídicas para pacientes que desejam tentar tratamentos alternativos com o Canabidiol (CBD). O coletivo trabalha há 8 anos atendendo a população de até 4 salários mínimos por família, através da orientação em relação à busca do óleo, oferecendo a consulta e o atendimento de forma gratuita.
“Isso aqui mudou bastante a minha vida como médico. Eu estava desesperado com a saúde no país e a Cannabis deu uma outra energia para buscar um tipo de tratamento menos agressivo para os pacientes”, destacou Nathan Kamliot, integrante do coletivo SUStenta Cannabis.
“Tem uma epidemia de drogas lícitas no país, uma epidemia grave. Não é a maconha que é um problema central. O paciente que chega buscando a maconha terapêutica já passou por várias coisas e não se importa se é maconha. Ele precisa de algo que realmente o ajude. A primeira ajuda que a gente tem visto é o desmame de outras medicações, tem que ser cauteloso, é todo um processo, a autonomia do paciente para se conhecer. Hoje em dia se terceiriza a saúde à vontade, são coisas básicas de saúde e as pessoas não têm conhecimento, não têm acesso”, comentou o médico.
O SUStenta Cannabis realiza consultas coletivas, com a presença de familiares e pacientes em formato de rodas de conversa com as pessoas e representações que chegam até o espaço de atuação do grupo. “A escuta é muito importante. Hoje em dia não tem escuta na saúde, raramente tem. O médico dedica cinco minutos para preencher uma receita, é um absurdo uma coisa dessa”, comentou Nathan.
De acordo com os médicos presentes no encontro, o uso da cannabis medicinal deve ser considerado a partir de uma avaliação e consulta com um médico que esteja não só familiarizado com o quadro médico da criança ou do adulto mas também com o produto, considerando os benefícios, possíveis efeitos colaterais e riscos específicos para cada paciente. É algo individualizado que requer acompanhamento e monitoramento pois cada organismo responde ao tratamento com suas especificidades, de forma gradativa até que a evolução e melhora aconteçam.
As redes de apoio reforçam, a cada dia, a necessidade da construção coletiva de estratégias na luta por políticas públicas que garantam o direito à saúde para toda população, independente de sua localidade, gênero, raça, idade ou condição médica.
Promoção de Territórios Saudáveis e Sustentáveis em Centros Urbanos
O projeto se propõe a atuar em territórios socioambientalmente vulnerabilizados em centros urbanos, tendo como experiência piloto o território ampliado de Manguinhos. Articulado e participativo, visa a construção de conhecimento e contribuir para a Promoção de Territórios Saudáveis e Sustentáveis a partir de iniciativas de assessoramento e de advocacy de arranjos de Governança Territorial Democrática com foco em políticas públicas saudáveis e territorializadas, que potencializem o enfrentamento das desigualdades sociais e iniquidades em saúde presentes nestes territórios (Complexo de Manguinhos e Bacia Hidrográfica do Canal do Cunha, no Rio de Janeiro). Entre suas atividades está a promoção de debates virtuais na Plataforma de Comunicação Cidades em Movimento.