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Projeto Memória da Fiocruz Minas resgata trajetória de cientista


06/04/2022

Natascha Stefania Carvalho De Ostos - Fiocruz Minas

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O Projeto Memória da Fiocruz Minas está descortinado trajetórias de pesquisadores esquecidos. Agora chegou a hora de conhecer Emma Elfriede Kaucher Darmstadter, as conquistas e os desafios de sua carreira no Instituto René Rachou.

Pesquisa publicada em 2021 apontou que as mulheres são minoria no mercado de trabalho STEM, sigla em inglês para “Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática”, configurando 26% dos profissionais dessas áreas no Brasil. Se nos dias de hoje existe tal sub-representação feminina, em meados da década de 1950 era raro encontrar mulheres com curso superior e trabalhando com ciência e tecnologia. Como Emma Elfriede Kaucher Darmstadter, nascida em 1933 na cidade do Rio de Janeiro.

Emma era filha única de pais europeus. A família mudou-se do Rio de Janeiro para Minas Gerais quando Emma era criança, em razão das atividades comerciais do pai. Segundo depoimento de Andreia K. Darmstadter, filha de Emma: “Minha avó dizia que minha mãe sempre se interessou por “vidrinhos” e “misturinhas” […]. teve uma atração muito forte pela ciência. Era estudiosa e investigativa. Ela ficava dividida entre fazer medicina ou farmácia. Acabou optando pela formação de Farmácia”. Durante o curso, Emma recusou-se a realizar as costumeiras viagens à Europa na companhia dos pais, preocupada com o possível impacto negativo nos seus estudos. Graduou-se pela Faculdade de Odontologia e Farmácia da Universidade de Minas Gerais, em dezembro de 1956.

No final do ano de 1957 ingressou no serviço público, no Departamento Nacional de Endemias Rurais (DNERu), como assessora administrativa no programa de Combate à Esquistossomose na Bahia, mas não chegou a trabalhar no estado, sendo disponibilizada para exercer suas funções no Instituto Nacional de Endemias Rurais (INERu), órgão de pesquisa do DNERu, em Belo Horizonte. Na capital mineira, Emma atuou no Centro de Pesquisas de Belo Horizonte (CPBH), posteriormente renomeado como Centro de Pesquisas René Rachou (CPqRR). Era comum na organização administrativa da época que funcionários fossem admitidos em uma determinada função, mas trabalhassem em área diferente daquela oficialmente registrada, atendendo às necessidades do órgão público. Foi esse o caso de Emma Kaucher, classificada como funcionária administrativa, mas que na realidade trabalhava como farmacêutica, em atividades de pesquisa. Somente em 1961 ela passou para o cargo de Farmacêutico do Ministério da Saúde, e em fins de 1964 foi registrada na função de Químico.

Emma Kaucher foi membro da Associação Mineira de Farmacêuticos. No CPqRR, trabalhou como assistente nos Laboratórios de Química e Imunologia. Suas atividades foram descritas em relatório elaborado por Wladimir Lobato Paraense, então diretor do INERu: “Planeja, orienta, executa e revê trabalhos sobre assuntos de química aplicada à medicina, especialmente dosagens de substâncias ou líquidos orgânicos e ou produtos utilizados na terapêutica de doenças endêmicas e no combate aos transmissores dessas doenças, análises eletroforéticas, análises de águas, preparo de drogas e de solução, e outros trabalhos de pesquisa química e biológica em protozoozes e helmintoses”.Juntamente com Ernest Paulini e José Pedro Pereira, também pesquisadores do CPqRR, publicou trabalho sobre a estabilidade do sal cloroquinado em condições de armazenamento.

Segundo relato de Andreia Darmstadter, Emma Kaucher tinha muito gosto pelo seu trabalho de pesquisa, e fez diversas amizades no Centro, como Alda Falcão e Rosa Brígido. Já casada com o médico Friedrich Johannes Darmstadter, e com a chegada dos filhos, os “enxovais de bebês foram bordados pelas colegas de serviço”. De vez em quando as crianças eram levadas para visitar o instituto: “fomos inclusive ao laboratório em que ela dividia os trabalhos com o “Tio” José Pedro [José Pedro Pereira]. Eles faziam pesquisa de doença de Chagas e leishmaniose. Eu sempre me encantava com as cobaias”.

A rede de amizades de Emma englobava várias mulheres com formação na área científica. Além das colegas de graduação, ela era muito próxima, desde a mais tenra infância, da família Alvarenga. Com destaque para Moema Gonçalves Alvarenga, engenheira e pesquisadora na área nuclear (madrinha da filha de Emma), e Beatriz Alvarenga, também engenheira e professora emérita da UFMG, autora de importantes livros didáticos sobre física. Assim, cercada, na sua vida pessoal, de mulheres dedicadas à ciência, Emma ocupou com confiança seu lugar no CPBH, em um ambiente dominado por homens.

Porém, a realidade de uma mulher casada e com filhos pequenos, que trabalhava fora de casa em plena década de 1960, impactou a trajetória profissional de Emma. Entre 1967 e 1977, pressionada principalmente pela mãe, a pesquisadora afastou-se do serviço, requerendo licença sem remuneração, para dedicar-se aos cuidados da família. Segundo Andreia Darmstadter, esse acontecimento, que interrompeu a carreira da farmacêutica por 10 anos, marcou fortemente sua vida, “Ela adorava o trabalho e a turma […]. Ela cede às pressões familiares e vai se ressentir sempre por sua opção”. Saudosa do ambiente de trabalho, mesmo afastada, Emma visitava regularmente o Centro, participando dos eventos comemorativos.

Em casa, Emma procurou desenvolver nos dois filhos o gosto pela ciência. O filho do casal formou-se em medicina, e a filha, Andreia, estimulada pelo exemplo da mãe, graduou-se em engenharia de agrimensura, integrando, hoje, aqueles 26% de mulheres que atuam profissionalmente no campo das STEM. “Como minha mãe trabalhava em um laboratório, tivemos contato com essa realidade das ações e reações químicas. Ela sempre nos estimulou, inclusive, montando um pequeno laboratório doméstico, fato que contribuiu para entendimentos futuros na atuação profissional. […] [eu] adorava fazer o famoso “sangue do diabo” […] fórmula que aprendi no Instituto. Meu irmão e eu brincávamos que nossa casa era o museu de história natural de ‘Dona Elfrida’”.

Com o fim de sua licença, Emma tentou voltar ao trabalho, mas foi colocada em disponibilidade, não conseguindo retomar a carreira, apesar do seu desejo e do empenho dos colegas em ajudá-la no retorno ao serviço. Frustrada, decidiu pela aposentadoria em 1981.

A trajetória de Emma K. Darmstadter é muito representativa das potencialidades e dificuldades históricas das mulheres pesquisadoras. Ela conseguiu vencer dois gargalos estruturais em plena década de 1950, formou-se em farmácia e conseguiu emprego na área. Desenvolveu pesquisas e construiu carreira na ciência, mas teve sua vida profissional limitada por pressões culturais que a levaram a interromper o trabalho para dedicar-se integralmente à vida doméstica. Anos mais tarde, sofreu novo revés, quando quis voltar ao serviço e não conseguiu, situação experimentada, ainda hoje, por muitas mulheres que, após anos afastadas do emprego para cuidar da família, enfrentam obstáculos para reintegração no mercado de trabalho.

Para Emma Kaucher, falecida em março de 2022, o CPqRR era local de trabalho e de sociabilidade, ambiente de troca intelectual, permeado por vínculos de amizade. Emma Darmstadter era entusiasta da ciência, uma das poucas mulheres pesquisadoras no Centro na década de 1960, participou de importantes investigações e merece ter sua trajetória reconhecida.

 

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