31/03/2016
Por Juliana Krapp/ Portal Fiocruz
Ao menos uma em cada cinco brasileiras, ao completar 40 anos, já interrompeu uma gravidez. A estatística é da Pesquisa Nacional de Aborto, de 2010, e é imprecisa porque as investigações esbarram num obstáculo incontornável: a criminalização e a condenação moral da prática no Brasil. Apesar de nos últimos anos terem aumentado as pesquisas sobre o tema, o silêncio e o medo que o envolvem limitam as formas de abordagem. Assim, a maioria dos estudos científicos têm sido feitos com mulheres internadas em hospitais da rede pública, e por profissionais envolvidos em seu cuidado. Isso acaba por restringir os segmentos sociais das análises, concentrando-as em mulheres com poucos recursos financeiros e deixando de lado aquelas de estratos sociais médios.
Um estudo publicado na edição mais recente da revista Cadernos de Saúde Pública, porém, traçou caminho diferente. A psicóloga e pesquisadora Paloma Silveira analisou 34 experiências de abortos provocados, narradas por mulheres e homens de estratos sociais médios, residentes na Grande Salvador e na Grande Recife. Todas as histórias envolviam procedimentos feitos em clínicas particulares, que foram descritas pelos entrevistados em dois tipos: as “top” e as “populares”. E evidenciam, em seu conjunto, como a criminalização do aborto, que culmina na ausência de leis e de regras para o funcionamento das clínicas, expõe as mulheres a uma série de violências e põe suas vidas em risco — mesmo nas clínicas do tipo “top”.
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“O que mais me surpreendeu foi constatar como a ilegalidade do aborto torna vulneráveis mulheres de diferentes estratos sociais. É evidente que são as jovens, negras, de classes socioeconômicas baixas e moradoras da periferia as que mais sofrem as consequências graves dos abortos clandestinos, como demonstram diferentes estudos. Porém, no senso comum existe a ideia de que, ao pagar pela interrupção numa clínica particular cara, o processo é mais seguro e o atendimento, humanizado. Isso não é verdade. As mulheres que entrevistei narraram situações diversas. Mesmo as atendidas em clínicas do tipo ‘top’ sofrem pelo descaso, pela falta de informação e de acolhimento das equipes, pelo preconceito e por maus-tratos”, descreve Paloma, que redigiu o artigo em parceria com as pesquisadoras Cecilia McCallum e Greice Menezes.
Curetagem sem anestesia
Um dos aspectos apontados pela análise diz respeito ao acolhimento da equipe médica. A maior parte das narrativas que citaram o atendimento como “bom” são aquelas feitas por mulheres que chegaram à clínica por indicação de alguém, ou seja, que tinham algum conhecido em comum com a equipe. Revelam, com isso, que não há homogeneidade no atendimento das clínicas.
As pessoas entrevistadas tinham a expectativa de que pagar por um serviço privado, mesmo que clandestino, garantiria um bom atendimento. No entanto, mesmo pagando caro, algumas entrevistadas foram mal assistidas pelas equipes. “Ouvimos relatos de falta de informação sobre os procedimentos, tratamento ‘insensível’ recebido do médico, manipulação agressiva do método por parte do profissional e o caso dramático do aborto realizado por curetagem sem anestesia”, aponta o artigo, que destaca: “a falta de controle sobre a prática médica ocasionada pela ilegalidade do aborto coloca as mulheres de estratos médios em uma posição de absoluto desamparo. A criminalização do aborto, no Brasil, atinge as mulheres de distintos estratos sociais, sujeitando-as às mesmas forças históricas, culturais e sociais que lhes impõem, na clandestinidade, uma situação de vulnerabilidade e um sofrimento desnecessário. Desse modo, a criminalização pune todas as mulheres, ainda que em graus diferenciados.”
“E ainda favorece a organização de um mercado clandestino que funciona de forma paralela, com autonomia absoluta dos médicos para determinar os valores cobrados, estando isentos de qualquer tipo de imposto ou regulação do Estado”, complementa a pesquisadora.
Desigualdade de gênero
A pesquisa qualitativa de Paloma teve como objetivo principal não apenas o itinerário abortivo, mas também a construção da decisão pelo aborto — processo que se revelou “complexo e dinâmico”, como explica a autora: “Um ponto importante a ser entendido é que a decisão pelo aborto não é simples. A decisão, em geral, está relacionada ao momento de vida em ocorreu a gravidez. Isso envolve tanto uma análise das condições socioeconômicas, como das relações sociais das pessoas e de seus projetos de vida. Algumas mulheres e homens que entrevistei contaram ter repensado a decisão pelo aborto diversas vezes, enquanto pesquisavam informações sobre o procedimento e até mesmo no dia da interrupção. O contexto clandestino torna o processo ainda mais difícil e longo e, também por isso, traz mais riscos.”
Além disso, a análise dos relatos dá sinais da desigualdade de gênero que marca a sociedade brasileira. Segundo as experiências colhidas por Paloma, alguns homens se mostraram solidários e responsáveis em todos os momentos do processo decisório, desde a confirmação da gravidez até a realização do procedimento. O grau de engajamento no processo, porém, variava de acordo com o envolvimento afetivo que mantinham com a parceira. “As narrativas refletem as desigualdades entre homens e mulheres no campo reprodutivo. Em nossa sociedade machista, a decisão pela continuidade da gravidez ou pelo aborto, e seus impactos, são delegados ainda à mulher. Muitas vezes o homem se mantém alheio, ignorando que sua responsabilidade nos aspectos reprodutivos não tem a ver com a relação afetiva-sexual que mantém com a companheira”, destaca.
"A criminalização do aborto, no Brasil, atinge as mulheres de distintos estratos sociais, sujeitando-as às mesmas forças históricas, culturais e sociais que lhes impõem, na clandestinidade, uma situação de vulnerabilidade e um sofrimento desnecessário"
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