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Operação carne fraca e modelo de produção brasileiro são temas de entrevista


27/03/2017

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Por: Cátia Guimarães (EPSJV/Fiocruz)

A operação policial que divulgou um conjunto de irregularidades na produção de carne no Brasil mobilizou consumidores nacionais e mercados internacionais. Mas, colocando-se de lado a suposta rede de corrupção envolvida, as denúncias sobre a qualidade da carne não foram propriamente uma surpresa. Já no ano passado, a Fundação Heinric Böll publicou o Atlas da carne: fatos e números sobre os animais que comemos, um estudo realizado em vários países. Organizadora da publicação e coordenadora do Programa de Justiça Ambiental da Fundação, Maureen Santos, aponta, nesta entrevista, as contradições postas pelo momento político, mas também a oportunidade para se discutir um novo modelo de produção. Mostrando a relação dessa cadeia produtiva com o uso de agrotóxicos, desmatamento e outros problemas socioambientais, ela garante que esse modelo não é sustentável e que traz impactos para a saúde humana.

Poucos anos atrás, você organizou um Atlas que acompanhou a cadeia produtiva da carne. As denúncias que foram alardeadas na Operação Carne Fraca foram uma surpresa?

O estudo trabalha com a ideia da cadeia global da carne. Obviamente, alguns problemas que foram denunciados agora de forma mais indireta já foram sugeridos no estudo. Claro que a questão da corrupção e da regulação não entram no estudo. A preocupação em relação à questão da qualidade da carne que o estudo traz também é muito centrada na utilização dos químicos, dos fármacos, da forma de produzir, que a gente também denunciou. O que tem relação são os problemas da cadeia industrial, que ficaram claríssimos também quando se mostra a relação dos pequenos frigoríficos com os grandes. Não li a investigação toda, mas seguramente ela vai mostrar algo relacionado ao impacto [desse modelo] nas condições de trabalho.

Me dá exemplo de denúncias da Operação Carne Fraca que, indiretamente, já eram sugeridas no Atlas?

Quando se fala da utilização de ácido ascórbico para melhorar o aspecto da carne, por exemplo. Quando, no estudo, no artigo 'Bandeja vermelha brilhante', é apontada essa questão de colocar algum gás ou produto químico para dar esse aspecto de carne fresca, estamos falando da questão da higiene.

A Operação Carne Fraca apontou mecanismos ilegais na cadeia produtiva. O que o estudo de que você participou conseguiu levantar, existem procedimentos que não são ilegais, mas que também pode se identificar como problemático para a saúde humana no consumo de carne?

Sim, com certeza. Alguns capítulos falam que a carne não é saudável porque está relacionada a uma determinada forma de produção. O estudo também, não abarca só carne de boi, abarca frango, porco etc., outros tipos de carne. Como não é só do Brasil - ainda que seja uma versão em português, trata do global -, o estudo fala mais ou menos sobre a tendência. E a tendência mundial é uma tendência ao confinamento, para aumentar a produtividade. E isso é um problema seríssimo. Já há pesquisas que mostram isso. Um problema é a forma de tratamento do animal, as toxinas que ele produz por conta dessa situação terrível que ele passa no curto tempo de vida para que se tenha uma produtividade maior. Tem também a alimentação dada [aos animais] que tem toda uma relação com a cadeia da soja transgênica e do milho transgênico. Há também a questão dos fármacos utilizados, dos hormônios de crescimento, do uso abusivo de antibióticos.

O Atlas traz um capítulo dedicado à questão da soja, destacando o fato de os animais se alimentarem de pastagem que envolve alimento transgênico - milho e soja especificamente -, portanto, com uma alta dose de agrotóxico. Existem estudos que comprovem ou insinuem que isso passa para carne que chega ao consumo humano?

O estudo não chega a apontar isso, ainda que já tenha dentro da OMS [Organização Mundial de Saúde] e de outras organizações alguns estudos sobre isso. Mas a gente não chega a apontar exatamente porque precisa de comprovação. Mas é uma hipótese que leva em consideração a questão do leite materno [pesquisas já encontraram agrotóxicos no leito materno] e outros problemas de saúde que vêm surgindo cada vez com mais força em países onde o consumo de carne vem aumentando, principalmente países emergentes, como a Índia e a China.

O Atlas aponta o tempo inteiro como um problema o aumento do consumo de carne. Mas isso aparece relacionado ao modelo de produção de carne que a gente tem hoje. Qual é o problema de se consumir carne nesse modelo?

Porque a cadeia industrial da carne está relacionada não só com a produção da pecuária, mas também com a cadeia do agronegócio de produção de soja e milho.  No caso do Brasil, a soja, depois da pecuária, é a principal monocultura em utilização de território: algo em torno de 31 ou 33 milhões de hectares. Então, do ponto de vista de ocupação de território, desmatamento, perda de biodiversidade, tem aí vários elementos. O estudo mostra, por exemplo, que para produzir um quilo de carne são necessários 15 mil litros de água. Dados do Brasil demonstram um consumo de carne equiparado ao dos países do Norte: a média nos países do Norte é de 70 quilos per capita, e no Brasil está em torno de 75, dependendo da região chega a 90 quilos por pessoa. Eu falo disso porque no Brasil a relação é de um boi por hectare por pessoa. Então, essa cadeia industrial, da forma como está colocada, respeitando uma lógica de modelo de produção, é altamente concentradora de renda, altamente impactante do ponto de vista socioambiental. Há conflitos gerados nesses territórios. Destacamos no relatório a questão do Cerrado, porque se a agropecuária há um tempo atrás ocupava essa região, com a expansão da soja, a pecuária acabou indo para a Amazônia, e chegam outros problemas ligados à produção da soja. A ideia é que essa cadeia seja mesmo global. E não podemos esquecer também o elemento de transporte da produção. Porque, já que temos uma cadeia global, as distâncias percorridas para se fazer a entrega desses produtos são imensas. E temos aí outras correlações, com a questão de emissão de gases de efeito estufa. Com o estudo, tentamos trazer alguns elementos para se pensar em uma transição porque essa cadeia, da forma como é colocada, não é sustentável.

A partir desse e outros estudos, a gente consegue identificar o que esse modelo de produção propriamente que envolve a cadeia da carne traz de impactos para a saúde humana?

Eu acho que temos alguns elementos comprovados. Já falamos dos agrotóxicos, mas tem a questão do alto consumo de proteína... Mas tivemos uma preocupação muito grande de que o Atlas não fosse uma propaganda de vegetarianismo. Não queríamos que fosse panfletário. Ao contrário: a ideia do Atlas é ajudar a entender que existe uma cadeia industrial que é extremamente devastadora do ponto de vista ambiental e que também tem impactos na saúde pública. Alguns artigos falam, inclusive, dessa produção de proteínas em laboratórios, o artigo sobre o hambúrguer de laboratório, a produção de carne de frango, dos alimentos superprocessados. Temos diversos exemplos [de problemas à saúde humana]: aumento da obesidade, aumento de problemas relacionados à tireoide... Já há vários outros estudos sobre isso no Brasil - a Abrasco [Associação Brasileira de Saúde Coletiva] fez um muito bom.

O Dossiê sobre os agrotóxicos?

Sim,o dos agrotóxicos, que fala do impacto de produtos químicos sobre a saúde. O Atlas não diz: “é para parar de comer carne porque…”. A carne faz parte da dieta, da segurança alimentar do brasileiro. Agora, por que necessitamos comer carne no almoço, na janta, às vezes o presunto no café da manhã, no lanche? E acho importante destacar também o impacto desses processados e ultraprocessados para uma dieta que não é de qualidade.

Se eu estou entendendo, você está dizendo que o consumo de carne tem aumentado substancialmente por força desse mercado, por força dessa cadeia produtiva.

Da propaganda. Tem um capítulo do Atlas que fala um pouquinho sobre marketing. Acho que isso também altera o comportamento do consumidor de forma gritante. E tem a questão da simbologia da carne, a carne tem um símbolo de status.

Depois da publicização das denúncias, formou-se uma polêmica em torno das motivações dessa operação Carne Fraca. Há quem denuncie que não é coincidência que a Lava jato esteja pegando as empreiteiras e agora a Carne Fraca esteja pegando os frigoríficos, que são, na verdade, as principais empresas daquele projeto de campeãs nacionais, de multibrasileiras. E que, portanto, no caso específico da Carne Fraca, haveria o dedo do capital internacional em função de uma disputa de mercado. Pelo que vocês identificaram dessa cadeia industrial, existem empresas estrangeiras interessadas em desmontar o império de empresas como a JBS e a BRS? Essa alegação faz sentido?

A cadeia é global e você está num sistema capitalista onde as disputas estão em jogo a todo momento. Esse é um setor extremamente rentável. E no Brasil, diferentemente da cadeia do agronegócio, que vai exportar grãos, você exporta realmente alimentos que já têm um nível de processamento maior e que é uma cadeia de maior valor agregado. Então, obviamente, o comércio internacional não está livre das profundas raízes de competição entre os países, ao contrário. Claro que isso [a Operação] pode servir sim como uma forma de protecionismo de quem está querendo desenvolver seu mercado nacional de carne, com empresas nacionais ou mesmo outras transnacionais que estejam no território. Eu não posso afirmar. Mas é realmente bem curioso que haja um foco específico de trabalho em relação a esse setor. Esses foram realmente os setores que mais ganharam e cresceram nesse último período. Ao mesmo tempo faz um pouco de sentido investigar esses setores… Mas a gente sabe também que as escolhas dessas investigações podem ter questões políticas. Eu acho que pode ter um pouquinho de cada coisa sim.

Ainda nessa polêmica, tem surgido um discurso de defesa da empresa nacional, um discurso de que, embora seja necessário averiguar e prender as pessoas físicas que são responsáveis por irregularidades, é preciso garantir-se que isso não vai atingir as empresas. Mas o Atlas mostra, por exemplo, um alto grau de internacionalização desses frigoríficos, com filiais fora do país, embora tenham recebido muitos recursos do BNDES na política de campeãs nacionais...

Teve toda essa política e não foi só no setor de carne. Vimos isso no setor de construção civil, na área de transporte, na própria comunicação, mas o da carne acho que foi o mais bem sucedido. Sempre batemos na tecla do modelo de desenvolvimento e esse não é um debate só do Brasil, é um debate global. A gente realmente acha – e investiga sobre isso - que esse modelo que está sendo colocado não é condizente com um futuro sem desigualdade, com a erradicação da pobreza, com um mundo em que você tenha recursos naturais para que as próximas gerações continuem tendo alguma qualidade de vida. Então, quando os campeões nacionais são citados - como tema de um artigo - é exatamente porque a gente acha que é possível sim um outro modelo, que não seja acompanhado desse tipo de política, que beneficiou alguns setores em detrimento de outros na economia brasileira que poderiam ter uma visão de futuro no sentido de pensar uma transição para outro modelo de desenvolvimento. Quando você favorece - e com muito dinheiro - setores do agronegócio em detrimento da agricultura familiar e camponesa, que é quem coloca comida de qualidade na mesa do brasileiro, que gera emprego, que tem menos impacto ambiental, isso são escolhas. Não se falava mais de mineração no Brasil com essa força. Por que o setor de mineração ganhou todo esse peso nos últimos anos? Ainda que a carne seja, como eu disse, já uma indústria de exportação de maior valor agregado, o resto foi para reprimarizar a economia. Temos uma crítica muito grande sobre as escolhas políticas, ainda que a gente entenda completamente o jogo político que está acontecendo agora. Isso realmente é muito preocupante, o que já está acontecendo no Brasil, as prioridades nas investigações etc. Temos preocupações em relação a isso, mas também, principalmente, estamos preocupados com o impacto disso para a vida do brasileiro e da brasileira, seja por conta do emprego, e pelas condições em que estamos vivendo. Eu não vou entrar no juízo de valor sobre a forma como foi feito ou não, acho que isso não cabe, mas achamos que se deveria colocar de forma até mais coerente, um debate sobre o modelo. Acaba que fica sempre: “porque o empresário é brasileiro, é nacional, é por causa disso”. Acho que não devemos fechar os olhos para o problema, temos que aproveitar para ver de que forma podemos pensar diferente.

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