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Oficina debate impactos sociais do zika dois anos após epidemia


14/05/2018

André Costa (CCS)

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Qual é a situação vivida pelas famílias das crianças afetadas pelo vírus zika, mais de dois anos depois da epidemia no Brasil? Que dimensões sociais da doença foram ignoradas, e como tirá-las da invisibilidade? De que modo a discussão sobre o vírus é indissociável de um debate sobre os direitos reprodutivos das mulheres e sobre o aborto, por exemplo? Qual deve ser uma abordagem ética para os sujeitos de pesquisa com um tema tão delicado?

Oficina debateu 'Saúde Global: a epidemia de zika e interseções internacionais' (foto: Peter Ilicciev)
 
 

Essas e outras questões estiveram em pauta nos dias 26 e 27 de abril na Fiocruz, na oficina Saúde Global: a epidemia de zika e interseções internacionais. Organizado pela Rede Zika Ciências Sociais, que reúne pesquisadores e instituições nacionais e internacionais, o evento teve um caráter de reunião de trabalho, com o objetivo explícito de não apenas apresentar estudos concluídos sobre o surto, mas também de avançar o conhecimento sobre a doença, por meio da troca de perspectivas e análises. Além da Fiocruz, a promoção do encontro ficou sob encargo do British Council, do Ano Brasil-Reino Unido de Ciência e Inovação, do Newton Fund e da rede Zikalliance.

Na abertura do evento, a presidente da Fiocruz, Nísia Trindade Lima, ressaltou que a cooperação entre o Brasil e o Reino Unido na área de pesquisa científica é “extremamente profícua”. Lima, que é socióloga, afirmou que o “surto de zika é completamente permeado questões sociais, o que se se exprime por exemplo nos temas dos determinantes sociais da saúde, dos direitos reprodutivos femininos e da liderança de mulheres nos movimentos sociais que surgiram para criar redes de apoio àqueles afetados”. Ela destacou ainda a “resposta imediata” da Fiocruz à epidemia, que se expressou tanto em protagonismo na área de pesquisa até iniciativas de vigilância e produção.

Presidente da Fiocruz, Nísia Trindade Lima ressaltou que a cooperação entre o Brasil e o Reino Unido na área de pesquisa científica é “extremamente profícua” (foto: Peter Ilicciev)

 

Após Lima, foi a vez do cônsul britânico no Brasil, Simon Wood, se pronunciar. Ele sublinhou a importância crucial de cientistas em emergências de saúde pública, uma vez que, em suas palavras, “políticos são particularmente ruins para responder a essas situações. Nestes cenários, é preciso não apenas ter um conhecimento científico profundo, mas ser capaz de articulá-lo de modo eficaz. Políticos muitas vezes podem sentir pânico e propor respostas sem respaldo na ciência”. Wood também manifestou altas expectativas em relação ao Ano Brasil-Reino Unido de Ciência e Inovação, que objetiva “promover e expandir a pesquisa científica em áreas-chave como a saúde e as ciências biológicas”, observando que a oficina se encaixava perfeitamente no tipo de inciativa buscada. 

O cônsul britânico no Brasil, Simon Wood, sublinhou a importância crucial de cientistas em emergências de saúde pública (foto: Peter Ilicciev)

 

O pesquisador da Gustavo Matta, da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz), que coordenou o encontro, afirmou que “ainda há muitas incertezas relacionadas ao zika. O objetivo deste encontro foi compartilhar experiências e informações, entre estudiosos de diferentes áreas do conhecimento, de modo a entender quais lições foram aprendidas, quais áreas merecem maior atenção e como a cooperação internacional pode atuar para fazer este enfrentamento”.

“A epidemia não acabou”

Apresentações ao vivo e por teleconferência aconteceram ao longo dos dois dias, sempre seguidas por acalorados debates e análises.  A ênfase sempre não foi tanto em seu impacto biológico, mas sim em impactos mais amplos, em famílias e comunidades. Os complexos efeitos do zika em sua dimensão social se transformam com o tempo, criando situações diferentes e exigindo respostas igualmente inéditas. Como sintetizou a pesquisadora Hanna Kuper, do Centro Internacional de Evidências em Deficiência, do Reino Unido, “para a Fiocruz e os grupos de pesquisa, que trabalham com questões sociais e humanitárias, a epidemia não acabou. Há uma série de questões que precisam ser abordadas”.

Assim como outros pesquisadores, o projeto de Kuper visa entender e auxiliar quais os impactos do zika nas famílias – nas mães, em primeiro lugar, mas também em outros adultos responsáveis, como pais e avós. Isso significa prestar atenção em pessoas que muitas vezes já vêm de contextos pobres, de precariedade e desamparo social, e que subitamente se veem às voltas com novos problemas econômicos e estruturais. Segundo Kuper, estes problemas incluem, por exemplo, pessoas que precisam deixar de trabalhar, porque precisam cuidar das crianças, ou então que encontram dificuldades para encontrar no Sistema Único de Saúde todos os serviços para o desenvolvimento dos filhos, como fisioterapia e outras atividades.

Estes novos desafios, observou a coordenadora da Unidade de Pesquisa Clínica do Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz), Maria Elizabeth Moreira, agravam cenários já bastante complexos. Moreira contou que a violência do Rio de Janeiro tem atrapalhado a participação de mães de bebês afetados em atividades de amparo no instituto onde trabalha – segundo ela, devido à violência, muitas vezes as mães devem permanecer trancafiadas em casa.

A historiadora da ciência Ilana Lowy comparou a situação da epidemia de zika ao que já aconteceu com a febre amarela na primeira metade do século 20 no Brasil (foto: Peter Ilicciev)

 

Estes aspectos podem ser incluídos naquilo que a historiadora da ciência Ilana Lowy, diretora do centro de pesquisa Cermes3, da Universidade Paris-Descartes, definiu como aspectos invisibilizados da doença. Lowy comparou a situação da epidemia de zika ao que já aconteceu com a febre amarela na primeira metade do século 20 no Brasil: ao mesmo tempo em que grandes narrativas se constroem pela mídia e por outros agentes, há dimensões que são deixadas em uma zona de sombra, passando à margem das políticas públicas, da pesquisa e do imaginário construído sobre o fenômeno. De acordo com Lowy, um aporte das ciências sociais a estas zonas de invisibilidade pode inclusive ajudar a esclarecer enigmas também relacionas às ciências biológicas, como, por exemplo, o elevando percentual de casos de malformação em uma área geográfica relativamente restrita no nordeste brasileiro e o percentual da população que já foi infectada pelo vírus – e, acredita-se, perenemente imune.

Aborto em discussão

A pesquisadora Marília Sá Carvalho, da Escola Nacional de Saúde Pública, introduziu um dos pontos mais polêmicos da oficina, que também se relaciona a assuntos invisibilizados no debate e, nas palavras da própria, é “central”: aborto. Segundo disse Sá Carvalho, “é necessário saber se houve diminuição no número de nascimentos provocados pelo zika. As mulheres adiaram a gestação? Abortaram? Este é um tema premente, que tem sido ignorado no Brasil, enquanto avança em países vizinhas como a Argentina”.
Camila Pimentel, socióloga da Fiocruz Pernambuco, observou que o debate sobre aborto e zika é bastante delicado. “Existem pessoas que entendem que relacionar zika e aborto reforçaria preconceitos – algumas pessoas chegam a falar em eugenia. É necessário cuidado ao falar do tema, para que não se pareça que é uma prescrição”.

A presidente da Fiocruz, Nísia Trindade Lima, afirmou que exatamente “por se tratar de uma escolha familiar, e não de uma política de estado, é descabido falar em eugenia. Este termo mais confunde do que esclarece a problemática. O tema do aborto não pode de modo algum ser colocado como prescrição, mas sim como escolha”. Lima acrescentou que, do ponto de vista de pesquisas qualitativas, em estudos sobre interrupção de gestação, um fator fundamental a ser considerado é a religião, entendendo como o discurso de católicos, evangélicos e adeptos de outras crenças interferem no debate. 

As dificuldades metodológicas de se abordar o objeto foram ressaltadas. A ilegalidade do Brasil torna difícil ou impossível saber quantos abortos foram feitos, se eles aumentaram, quem são essas pessoas, onde estão. A esse respeito, Maria Elizabeth Moreira afirmou que, “se houve aumento no número de abortos, é claro que essas mulheres não vão aparecer”. Abordagens alternativas foram oferecidas, como analisar o número de casos de mulheres que tiveram complicações e foram atendidas no SUS. Outra opção foi sugerida por Fábio Gouveia, pesquisador do Museu da Vida da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) e do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da UFRJ: o uso de big data. De acordo com Gouveia, “seria interessante consultar, por exemplo, a curva da procura por aborto no Google. Será que houve aumento nas buscas plea medicação? Considerando que os dados da internet não são sinônimos com a realidade, esta é mais uma ferramenta a ser incorporada”.

Ética em pesquisa

Outra pesquisa apresentada na oficina foi a de Denise Pimenta, da Fiocruz Minas, e de João Nunes, do departamento de relações internacionais da Universidade de York, no Reino Unido. Os próprios disseram ter estudado o fenômeno do zika, nas palavras de Nunes, “em termos de políticas a nível de governança global da saúde”. A partir disso, escutaram três vozes que consideraram negligenciadas: movimentos sociais feministas e de mulheres, particularmente em áreas rurais; associações de mães de crianças com microcefalia; agentes comunitários de saúde. 

João Nunes, do departamento de relações internacionais da Universidade de York, falou sobre o estudo do fenômeno do zika, feito em conjunto com a Fiocruz Minas (foto: Peter Ilicciev)

 

A pesquisa os levou a Germana Soares, presidente da União Mães de Anjo, associação que presta auxílio a famílias de crianças afetadas pelo zika. Em depoimento gravado para os pesquisadores e reproduzido na oficina, Soares é severamente crítica de pesquisadores que “se aproveitaram da fragilidade das famílias, em tentativa de descobrir o que as crianças tinham, sem oferecer nada em retorno, nem mesmo o resultado da pesquisa. São pessoas que ganharam nome, dinheiro e destaque, virando referência, mas nunca se preocuparam em dizer as consequências da coleta do material”. 

Soares afirmou ter “consciência de que pesquisas são importantes, mas é necessário respeito. Há pesquisadores que dizem que vão passar 30 minutos e ficam a tarde inteira, outros, tentam iludir famílias, tratá-las como objetos e não como humanos. Como todos progridem nas pesquisas e nossa assistência continua tão precária como sempre, atualmente não temos interesse em receber pesquisadores. Temos um grupo pequeno, e muitas mães se atualmente se recusam a falar com estudiosos”.

Comentando a mensagem deixada por Soares, Gustavo Matta propôs a realização de “oficinas com as mães sobre o que o que significa ser participante de uma pesquisa. Quais são os seus direitos, como lidar com o assédio, o que deve ser esperado a partir daí”.
Nos encaminhamentos da reunião, foi acertado que a revista Cadernos de Saúde Pública, da Escola Nacional de Saúde Pública, terá uma edição dedicada à dimensão social do zika. Seus focos de interesse devem incluir questões abordadas na oficina, como direitos sexuais e reprodutivos, masculinidades e zika, tensão entre abordagem comunitária e responsabilização individual, entre outros. Ainda não há previsão para a chamada para artigos.

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