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Lucas Tramontano: 'Fragilidade do trabalho na favela foi grande fator na pandemia'


31/01/2024

Eric Veiga Andriolo (Agenda Jovem Fiocruz)

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Para os jovens moradores da Maré, a sensação é de que “na favela, nada parou” durante a pandemia de Covid-19. Como em muitos lugares do país, a Maré viveu o conflito entre as recomendações das autoridades e os discursos negacionistas. Mas uma pesquisa de pesquisadores do Instituto Fernandes Figueira (IFF) da Fiocruz, revela que não foram apenas falsidades, mas também outras realidades que impediram a favela de “parar”. Entre elas, a precariedade do trabalho naquele território. 

“Para que você possa se isolar você depende de uma estrutura que lhe dê capacidade de continuar ganhando  dinheiro em casa.”, explica Lucas Tramontano, um dos pesquisadores que assinam o artigo “Aqui na favela, nada parou: percepção da pandemia de covid 19 por homens jovens do Complexo da Maré”. 

O texto, publicado no periódico Ciência e Saúde Coletiva, representa parte de sua pesquisa sobre a saúde naquele território, financiada pelo Inova Fiocruz. Tramontano é farmacêutico, mestre e doutor em saúde coletiva pelo Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (IMS UERJ)

O estudo entrevistou dez jovens homens com entre 18 e 29 anos em 2022, quando a pandemia de Covid-19 no Brasil estava chegando ao fim graças à campanha nacional de vacinação. 

Para o pesquisador, chamou atenção a baixa adesão aos discursos negacionistas, bem como a facilidade de vacinar a população.

“As pessoas não são tão vulneráveis quanto se pode parecer de fora. Elas são capazes, sim, de ter alguma competência sobre a informação que consomem. Isso é uma coisa que quebra o estereótipo de que a juventude da periferia é muito permeável a qualquer discurso”, afirmou.

Um dos fatores de resiliência identificados no território foram as organizações sociais e governamentais, como a Fiocruz e as universidades, que serviram de fontes de informação oficial para a população local. “Acho que há um papel que a Fiocruz cumpre no território. É onde todo mundo se vacina, onde todo mundo busca informação, e acredito que isso não é pouco. É algo falado espontaneamente nas entrevistas. Acredito que essa presença da Fiocruz ali tem um impacto protetor contra a desinformação.”

O bairro da Maré, no Rio de Janeiro, compreende 14 comunidades e abriga quase 130 mil pessoas, das quais 27% são jovens entre 15 e 29 anos, segundo o Censo Populacional da Maré publicado pelas Redes da Maré em 2019.

 

A sua pesquisa entrevistou homens jovens. O que justifica esse recorte?

Há pouca adesão dos homens em todas as faixas etárias às práticas preventivas em saúde. Vivemos em uma sociedade com uma visão muito binária e muito dicotômica de gênero. O espaço doméstico é um espaço feminino e o espaço público é um espaço masculino. Da mesma maneira, o espaço do cuidado está mais no campo das mulheres do que dos homens. Uma das coisas que nós queríamos observar era isso: qual seria o impacto da pandemia num público que está acostumado a sair, a estar na rua, cuja vida e toda sociabilidade sempre envolve o estar do lado de fora, interagir com outros homens. Grande parte das formas de combate ao vírus passava por atividades de prevenção; como isso se daria num público que é frequentemente resistente a esse tipo de ação em saúde? 

Seus entrevistados eram bem diferentes entre si no tocante à carreira e à escolaridade. Qual é o perfil do homem jovem favelado periférico?

Seria difícil traçar um perfil muito homogêneo, mas estamos falando majoritariamente de homens negros. Os mais jovens, com 18 a 21 anos, acabaram de terminar os estudos na escola. Apesar de alguns estereótipos, na nossa na nossa amostra só houve uma única pessoa que abandonou o ensino médio. Há uma tendência a já começar a vida profissional em atividades muito informais, bicos: trabalhar num comércio da família ou na rua com alguém com quem tenha relação. Isso começa ali no período escolar, é relativamente comum. 

E aqueles jovens mais adultos?

Acima dos 25 anos, estamos falando de alguém que está inserido no mercado de trabalho e já encerrou os estudos faz tempo. Percebemos aí uma certa dificuldade de obter um emprego formal com carteira assinada e estável. Você tem trabalhos muito curtos. O trabalho como entregador de aplicativo vem se destacando mais recentemente. Também há a ideia de se tornar comerciante. A Maré, especificamente a região da Nova Holanda tem muito comércio, então é muito comum que a família tenha uma lojinha e esses jovens já assumam o negócio da família muito cedo.

Por que ‘nada parou’ na favela?

“Aqui na favela nada parou” é uma frase muito crítica de um entrevistado sobre a forma como ele percebeu que a vizinhança de uma maneira geral lidou com o isolamento durante a pandemia. Era uma percepção de que as atividades, principalmente aquelas de lazer, não pararam durante o período da pandemia e que houve um isolamento muito curto. Essa crítica se repete em várias entrevistas, ainda que tenha havido uma discrepância muito grande entre os entrevistados: alguns ficaram apenas um mês isolados enquanto outros passaram mais de um ano. Essa diferença é diretamente associada às possibilidades econômicas de trabalho que permitiam o isolamento ou não. 

E por que, na sua análise, a favela da Maré não observou o distanciamento social?

Há vários fatores, mas eu destacaria principalmente a vulnerabilidade. Para que você possa se isolar você depende de uma estrutura que lhe dê capacidade de continuar ganhando  dinheiro em casa. Estamos falando de um espaço onde a grande maioria dos empregos são trabalhos informais. Há uma dificuldade maior para fazer a migração para o trabalho remoto que aconteceu mais naturalmente em outras áreas da cidade. A fragilidade dos contratos do trabalho é um grande fator, principalmente na juventude. São pessoas em início de carreira, e nas favelas isso acaba sendo exacerbado. Acredito que quando o cumprimento das medidas protetivas não acontecia era em função de responsabilidades ou, em alguns casos, por problemas graves de saúde mental entre algumas pessoas. Momentos de depressão, ansiedade ou abuso de substâncias. Escutamos muito que chegou um momento em que “Eu preciso sair senão eu vou enlouquecer”. 

Outros fatores incluem a desinformação?

Uma curiosidade da pesquisa é que as pessoas na amostra de fato estavam convencidas dessa necessidade [de isolamento social]. Ainda que essa não seja a realidade da favela como um todo, os jovens entrevistados parecem não ter aderido a uma série de discursos negacionistas da pandemia. As pessoas na nossa amostra não questionaram a vacina. A imensa maioria deles não tinha ouvido falar em cloroquina. Ninguém tomou. Um deles tomou a ivermectina só uma vez mas não sabe dizer muito bem quem indicou. Não encontramos o discurso do tratamento precoce, que era muito presente em outros estratos sociais. Nós esperávamos que houvesse um acompanhamento em redes sociais de conteúdos que propagam a desinformação e também não encontramos isso. 

O que explica essa postura tão favorável à ciência entre os jovens entrevistados?

Acho que talvez haja algo relacionado às pessoas se saberem entrevistadas. Elas sabem qual é o correto a se dizer em uma entrevista. Nesse jogo, aparecia um olhar muito crítico sobre o outro. Fala-se muito sobre as outras pessoas, os vizinhos, pessoas da família: elas sim eram negacionistas; elas não cumpriam a quarentena, mas “eu” cumpria. Um programa de imunização bem sucedido como o do Brasil também tem um impacto nessas pessoas. A ideia de que vacina é algo positivo está muito introjetada e aparecia muito no discurso deles. Também destacamos a força que a evidência bruta tem para as pessoas. Era óbvio que depois da vacina as pessoas não morriam mais. Novamente, o negacionismo aparece é no outro. Um outro de difícil definição. “Teve gente que se recusou a vacinar porque são irresponsáveis, egoístas, não tinham empatia, não tinham solidariedade”. Mas não fica muito claro quem são essas pessoas, porque quando você pergunta: “e na sua casa?” “Não, meus familiares todos vacinaram”. Ninguém teve questionamento. Aí fica uma dúvida: quem são essas pessoas negacionistas, de fato? A pesquisa de campo foi feita no final de 2022; todo mundo já tinha tomado duas doses.

No artigo, vocês também apontam a importância das fontes institucionais de informação.

Um fator muito mencionado nas entrevistas é a presença tanto de ONGs e de movimentos sociais fazendo um papel de divulgação, quanto também de instituições governamentais. Eles mencionam as universidades, mencionam muito a Fiocruz. Acho que há um papel que a Fiocruz cumpre no território. É onde todo mundo se vacina, onde todo mundo busca informação, e acredito que isso não é pouco. É algo falado espontaneamente nas entrevistas. Acredito que essa presença da Fiocruz ali tem um impacto protetor contra a desinformação.

No artigo, vocês mencionam que é muito baixa a qualidade da conexão de internet na Maré e os jovens se informaram principalmente pela televisão…

Esse dado eu definiria como surpreendente. Tendemos a pensar que os jovens são todos muito conectados. É verdade que todos eles usam redes sociais todo dia, não é que estejam excluídos do mundo digital, mas de alguma forma eles têm outro processo. Encontramos uma espécie de “bolsões de internet”. Não é comum ter computador em casa. Há certos espaços com wi-fi aberto, seja no comércio ou em diferentes ONGs. Ali existe um entra-e-sai de conexão. Uma hora elas estão desconectadas: você envia uma mensagem de WhatsApp e não chega. De repente elas entram em algum espaço onde há wi-fi, e onde ficam mandando áudio, respondendo mensagens. Depois de resolver os problemas ali, saem de novo e você novamente perde a conexão até um outro bolsão. A comunicação é partida, diferentemente da imagem que a gente tem do nosso cotidiano de uma comunicação automática, instantânea em qualquer lugar e a qualquer momento. A ideia de que a televisão é uma das principais fontes de informação foi outra surpresa muito grande. A gente imagina que a televisão é superada, principalmente entre jovens. Nesse caso, não. Talvez tenha a ver com a qualidade baixa da internet.  

Nas entrevistas, podemos perceber que os jovens têm uma postura crítica em relação a si mesmos, por terem aderido à quarentena menos do que o ideal. Isso mostra que há responsabilização individual?

Sejamos sinceros: isso não é algo que se restringe a esse público e não é algo que se restringe à pandemia. Vivemos um processo de responsabilização individual pelo estado de saúde que é parte de uma ultra-individualização da sociedade com impactos muito negativos no estado de saúde das pessoas. Você é culpado porque você não se alimentou bem; porque você tem um comportamento nocivo. Mas não há um questionamento de por que que eu não me alimento bem, porque eu tenho esse comportamento. Mas essa não era uma grande reflexão dos entrevistados, exceto no caso daqueles mais escolarizados, com pós-graduação e uma visão mais política da sociedade. De maneira geral, ouvimos um discurso quase punitivo. “Eu deveria ter ficado mais”; “Eu poderia ter me esforçado mais”. Sempre com uma certa desculpa, uma certa apologia; uma culpa. “Ai, mas eu não aguentava mais, eu tinha que ver meus amigos, eu estava surtando”. Existe aí um “Eu errei mas por favor me perdoe”.

Como os entrevistados viam o fim da pandemia?

Os entrevistados apresentam uma noção pessimista do fim da pandemia. A pandemia não vai acabar, vai emendar outra coisa e a gente vai ficar para sempre preso nisso, temos que nos acostumar com essa nova realidade. Há uma percepção de fragilidade das relações sociais, fragilidade de toda organização ali. A ideia de que de repente pode acontecer alguma coisa e o mundo pode parar. Por outro lado, houve algumas percepções positivas. Vários entrevistados destacaram o ganho de educação sanitária em relação a lavagem de mãos e de alimentos, a importância de uma gripe. Acho que isso é o que dá a sensação de que a pandemia não parou e não vai parar. Em alguma medida é um ganho de educação sanitária da população. Também tem o fortalecimento de certos laços. Buscar redes de apoio é algo que foi muito dito. É uma visão um pouco esperançosa.

O que o contexto da pandemia revela sobre as condições sociais nesse território?

Acho que fica muito clara a característica da favela como um território completo, no sentido de que ali ocorre tudo e a vida das pessoas é completamente atrelada ao território. Toda atividade esportiva, educativa, familiar, os espaços religiosos, o lazer, lugares onde levar as crianças, é um território muito completo. Isso traz coisas positivas, como o sentimento de comunidade. Uma série de questões que estavam colocadas no resto da sociedade não aparecem ali, como é o caso do negacionismo e a desinformação. As pessoas não são tão vulneráveis quanto se pode parecer de fora. Elas são capazes, sim, de ter alguma competência sobre a informação que consomem. Isso é uma coisa que quebra o estereótipo de que a juventude da periferia é muito permeável a qualquer discurso. Não, eles são muito mais do que isso. Mas ao mesmo tempo, para muitos deles esse território traz uma ideia de que não tem pra onde sair. Muitos rapazes não sabem nomear grandes avenidas do Centro. Por exemplo, um deles não sabia nomear a Av. Presidente Vargas. Isso é muito impactante para alguém que está em início de carreira. 

Qual ensinamento você gostaria que surgisse a partir da sua pesquisa?

Há um grande espaço de diálogo com esse público jovem, mas o diálogo que acontece é muito melhor com as famílias desses jovens do que com eles diretamente. Quem cumpre a função de informação em saúde são ONGs e movimentos sociais. Não há nenhum problema nisso, pelo contrário. Mas a referência do serviço público de saúde é mais da família do que deles. Existe um espaço ali de aceitação a argumentações, principalmente a partir dos lugares onde eles circulam, as possibilidades de carreira, de pensamentos de futuro, de lazer. Isso abre um enorme flanco para a instituição de saúde voltada para esse público tentar uma aproximação direta. Eles possuem desejos e hábitos que favorecem esse diálogo. Acho que hoje em dia aproveitamos isso muito pouco. A gente se agarra a imagens muito estereotipadas do que é a vida desse jovem, sendo que, na verdade, nós estamos no território: é só olhar para o público jovem especificamente. Existe muito espaço aí para educação futura.

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