28/06/2021
Max Gomes (IOC/Fiocruz)
A entrada do Sars-CoV-2 no Brasil ocorreu, principalmente, pelos aeroportos internacionais. No entanto, foram pelas rodovias federais e estaduais que o novo coronavírus avançou pelo país. Publicado recentemente na revista Scientific Reports, um artigo com participação do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) investigou os percursos traçados pelo vírus causador da Covid-19 em território nacional. Os autores destacam três fatores principais para sua propagação inicial: a introdução em regiões com grande potencial de disseminação, a livre circulação em estradas que conectam metrópoles com cidades do interior e a desigual distribuição geográfica de unidades de terapia intensiva (UTI).
A partir de uma modelagem matemática, os cientistas identificaram que 17 cidades brasileiras correspondiam a quase uma totalidade dos casos iniciais de disseminação do Sars-CoV-2 durante os 3 primeiros meses de circulação do vírus no país. A principal delas era a cidade de São Paulo que chegou a registrar 85% dos casos originais entre final de fevereiro de 2020 e metade de março do mesmo ano. O estabelecimento da transmissão comunitária do novo coronavírus nessas áreas combinado às dinâmicas de mobilidade humana fomentadas pelas complexas redes de transportes determinou o alastramento geográfico da Covid-19 para municípios menores.
À medida que os casos cresciam no interior, pacientes em situações mais graves dessas localidades passaram a buscar assistência médica em grandes cidades devido à ausência de leitos de UTI em seus municípios, criando, assim, um “efeito bumerangue”. Esse comportamento provocou uma distorção na distribuição dos números de mortes por Covid-19 no Brasil, que deixou de acompanhar a quantidade de casos de cada região e passou a ser relacionada com a ocupação de leitos em unidades de terapia intensiva.
“Se um lockdown em capitais com potencial de disseminação tivesse sido implementado cedo, restrições obrigatórias de tráfego rodoviário fossem aplicadas, e uma distribuição geográfica mais equitativa de leitos de UTI existisse, o impacto da Covid-19 no Brasil teria sido significativamente menor”, afirmam os pesquisadores no artigo.
Juntamente com Cecilia Andreazzi, do Laboratório de Biologia e Parasitologia de Mamíferos Silvestres Reservatórios do IOC/Fiocruz, assinam o artigo Miguel Nicolelis, da Duke University Medical Center, nos Estados Unidos; Rafael Raimundo, da Universidade Federal da Paraíba; e Pedro Peixoto, da Universidade de São Paulo.
Das capitais para o interior e de volta às capitais
Por estar localizada ao lado do maior aeroporto internacional do Brasil e possuir o maior fluxo de tráfego rodoviário do país, a capital de São Paulo abrigou o maior índice de disseminação de Sars-CoV-2 nas primeiras três semanas de propagação do vírus, com 85% dos casos originais. Em seguida, outros 16 municípios também registraram altos índices. Entre eles, as capitais Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Fortaleza, Recife, São Luís, João Pessoa, Porto Alegre, Curitiba, Brasília e Manaus. Juntas, essas cidades foram responsáveis por cerca de 98% de dispersão do novo coronavírus em seus três primeiros meses de circulação.
Após o estabelecimento da transmissão comunitária nessas localidades, em pouco tempo a Covid-19 alcançou o interior do país. Como as cidades menores são altamente dependentes de outros municípios (geralmente capitais) para aquisições de bens e acesso a serviços públicos, incluindo cuidados de saúde, seus moradores acabaram sendo infectados durante esse trânsito. Acometidos pela doença, essas pessoas retornam às capitais em busca de atendimento médico, seguindo um padrão que pode ser observado em diversas regiões do Brasil.
A análise do fluxo de pacientes com Covid-19 revelou que a capital de São Paulo recebeu residentes de 464 municípios, seguida de Belo Horizonte, que recebeu pacientes de 351 cidades, Salvador (332), Goiânia (258), Recife (255) e Teresina (255).
“Pessoas de municípios do interior passaram a corresponder a uma grande porcentagem de admissões em hospitais públicos e privados nas capitais. Depois disso, diversos desses hospitais ficaram sobrecarregados”, apontam os autores.
Ainda que a assistência gratuita oferecida pelo Sistema Único de Saúde (SUS), que atende cerca de 7 em cada 10 brasileiros, tenha sido essencial para evitar um agravamento ainda maior da pandemia, a necessidade de aprimoramento na distribuição de leitos e serviços é enfatizada na publicação.
“A crise epidêmica da Covid-19 expôs a inadequação da política de concentração da maior parte das instalações de hospitais terciários e leitos de UTI em um punhado de cidades de médio porte e capitais em todo o Brasil”, destacam os especialistas.
Os cientistas finalizam o artigo com um alerta sobre a necessidade de uma reação mais eficiente de gestores assim que emergências sanitárias sejam declaradas, além de um financiamento adequado para o desenvolvimento de sistemas de informação e a gradual descentralização de unidades de terapia intensiva.
“Nos próximos anos, essa noção deve ser considerada um ponto de partida para desenhar políticas públicas urgentemente necessárias destinadas a preparar instituições de saúde brasileiras, a níveis federal e estadual, para coordenar respostas não-farmacêuticas robustas para o enfrentamento de emergências epidemiológicas em todo o país, tal como a atual pandemia do Sars-CoV-2”, concluem.