25/08/2023
Thais Vidaurre (COC/Fiocruz)*
As décadas seguintes à criação do Ministério da Saúde testemunharam o adensamento do debate em torno da gestão do trabalho e da educação em saúde. O fortalecimento de tal agenda, sobretudo a partir dos anos de 1960, ocorreu sob grande influência da Organização Mundial da Saúde (OMS) e da Organização Pan-americana da Saúde (Opas), no contexto das discussões sobre o planejamento em saúde e o desenvolvimento. Na década de 1970, o Programa de Preparação Estratégica do Pessoal de Saúde (Ppreps) constituiu uma das ações mais relevantes do Ministério para a educação em saúde. Fruto de um acordo firmado em 1973 entre a Opas e o Ministério da Saúde, o Ppreps buscava ampliar a formação de trabalhadores de nível médio; promover a integração docente-assistencial e a ampliação da rede de serviços (Pires-Alves, Paiva e Hochman, 2008).
A consciência da importância dos trabalhadores da saúde e de sua formação também esteve presente nos debates da Reforma Sanitária Brasileira e da 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986. À época, o acúmulo e a força das discussões contribuíram para que, tanto na Constituição de 1988 quanto na Lei Orgânica da Saúde, a ordenação da formação de recursos humanos constasse entre as responsabilidades do Sistema Único de Saúde (SUS). A ousada proposta de universalização da assistência à saúde por meio da adoção de uma nova lógica de organização dos serviços de saúde exigia, por um lado, a ampliação e uma melhor distribuição dos trabalhadores envolvidos nesse sistema. Por outro, requeria mudanças qualitativas na forma de organizar e produzir as ações de cuidado. Em outras palavras, a realização das mudanças constitucionalizadas em 1988 demandava a estruturação de políticas que garantissem trabalhadores em número adequado, nos lugares necessários e com o perfil de formação em sintonia com os princípios do SUS, além da garantia de condições de trabalho, de carreiras, salários, formas de vínculos e relações de trabalho dignas.
Nos anos que seguintes à criação do SUS, as questões relacionadas à educação e à gestão do trabalho em saúde constituíram pautas importantes no Ministério da Saúde, cujo sentido das ações refletiram os diferentes governos e conjunturas. Ao longo da década de 1990 a gestão do trabalho se configurou como uma área de tensão (Machado e Ximenes Neto, 2018). Nesse período, a estruturação do SUS e a ampliação da cobertura de diversos serviços se deu pari passu ao aprofundamento da Reforma Gerencial do Estado brasileiro que impunha severas restrições aos gastos com o funcionalismo público. Concomitantemente, o processo de municipalização do SUS contribuía para uma complexificação do mercado de trabalho público na saúde. Ao longo da década de 1990, os municípios se tornaram, progressivamente, o principal empregador dos trabalhadores para o SUS, com capacidades de pagamento, atração e de gestão heterogêneas. Assim as contratações efetuadas no processo de ampliação dos serviços de saúde ocorreram, em grande parte, por meio de vínculos precários (Machado e Ximenes Neto, 2018). Nesse cenário, a capacidade do governo federal estabelecer, via Ministério da Saúde, medidas de gestão do trabalho com alcance nacional para o SUS ficou limitada.
No que diz respeito à educação em saúde, o contexto da década de 1990 também não foi favorável para o desenvolvimento de medidas mais estruturantes. Esse período foi caracterizado pela flexibilização da regulação pública e pela ampliação expressiva da participação de instituições privadas lucrativas no ensino superior brasileiro. As mudanças instituídas pela legislação que regulamentou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) de 1996 significaram limitações ao papel do Ministério da Saúde na ordenação dos cursos de ensino superior das profissões da saúde (Franco, 2016). Em que pese esse processo, durante os anos finais da década de 1990 e os anos 2000, no âmbito do Ministério da Saúde foram desenvolvidas ações que buscaram adaptar o perfil dos profissionais formados às necessidades do novo modelo de atenção, sobretudo ao trabalho nos serviços de Saúde da Família. Nesse momento, a principal estratégia foi a criação de Polos de capacitação em Saúde da Família (Polos – PSF), implementados por meio de convênios entre as secretarias estaduais e municipais de saúde e Instituições de Ensino Superior.
Em 2003, no processo de reestruturação do Ministério da Saúde do primeiro governo Lula (2003-2006), foi criada a Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (SGTES). A criação da SGTES marcou um capítulo decisivo no percurso das políticas voltadas para os Recursos Humanos em Saúde, significando uma maior institucionalização das questões do trabalho e da educação em saúde, possibilitando a coordenação das ações e a dotação de orçamento específico. A SGTES foi composta por dois departamentos.
Ao Departamento de Gestão e da Regulação do Trabalho em Saúde (Degerts) foram atribuídas as responsabilidades de propor, incentivar e acompanhar as políticas de gestão, planejamento e regulação do trabalho em saúde. Nos anos seguintes a sua criação foram adotadas medidas importantes nesse âmbito, entre elas a reinstalação da Mesa Nacional de Negociação Permanente do SUS, a publicação de Diretrizes Nacionais para a instituição ou a reformulação de Planos de Carreiras, Cargos e Salários no âmbito do SUS, a criação da Câmara de Regulação do Trabalho em Saúde e do Comitê Nacional Interinstitucional de Desprecarização do Trabalho no SUS (Desprecariza SUS). Tais medidas apontavam para o fortalecimento e para a incorporação do tema das condições e vínculos de trabalho na estrutura do Ministério da Saúde. O alcance dessas medidas, entretanto, foi limitado.
No que diz respeito ao Departamento de Gestão da Educação em Saúde (Deges), os primeiros anos de atuação foram marcados por uma ênfase na Educação Permanente como dispositivo estratégico. A Política Nacional de Educação Permanente em Saúde (Pneps), de 2004, tinha como estratégia de implementação a criação dos Polos de Educação Permanente em Saúde. Também foram desenvolvidas ações em conjunto com outros setores, como o AprenderSUS, com instituições de pesquisa, e o VER-SUS, com o movimento estudantil. A aproximação entre instituições de ensino e serviços de saúde se colocava como possibilidade de conectar os estudantes de cursos de graduação da área da saúde com a realidade do SUS, além de promover o cotidiano de trabalho como um renovado e vigoroso espaço de aprendizagem. No decorrer dos anos 2000 também foram implementados importantes programas de incentivo à reorientação curricular e pedagógica das graduações em saúde e o fortalecimento da integração entre ensino e serviço. Os dois principais programas desenvolvidos nesse sentido foram o Programa Nacional de Reorientação da Formação em Saúde (Pró-saúde) e o Programa de Educação pelo Trabalho (PET Saúde), voltados para as graduações em saúde, e o Programa de Formação de Profissionais de Nível Médio para a Saúde (Profaps), orientado para o ensino técnico.
A partir do primeiro governo de Dilma Rousseff (2011-2014), o Ministério da Saúde passou a desenvolver um conjunto de medidas voltadas para o problema da distribuição e fixação de profissionais de saúde. Nesse sentido, o Programa de Valorização do Profissional da Atenção Básica (Provab) foi criado em 2011 com o objetivo de estimular médicos, enfermeiros e dentistas a atuarem em equipes de Atenção Básica de municípios com dificuldades para contratar e fixar profissionais. Em 2013, a criação do programa Mais Médicos apontava no sentido de uma maior regulação do Estado sobre a formação e o mercado de trabalho de médicos. O programa instituiu mudanças na formação médica e ampliou o número de cursos e vagas de graduação em medicina, bem como desenvolveu ações para o provimento emergencial de médicos para áreas desassistidas.
Nesses 70 anos do Ministério da Saúde e 35 anos do Sistema Único de Saúde, as ações desenvolvidas pelo Ministério contribuíram para a introdução de mudanças substantivas na formação dos trabalhadores da saúde. Em que pese os importantes avanços na direção de uma formação para o SUS, persistem desafios relacionados à inadequação entre o perfil de profissionais e técnicos e as necessidades do sistema de saúde, além da má distribuição territorial. As mudanças no ensino brasileiro observadas nas últimas décadas, como a ampliação da participação privada e a introdução de cursos de graduação na modalidade à distância, significam novos desafios para o desenvolvimento de políticas para a educação em saúde.
No campo da gestão do trabalho em saúde podemos afirmar que residem parte dos principais desafios do SUS. As diversas políticas e ações desenvolvidas pelo Ministério da Saúde que reafirmaram a centralidade do trabalho e do trabalhador para a institucionalização do SUS, como já mencionado, foram limitadas, decisivamente, pela reforma administrativa da década de 1990, pela Lei de Responsabilidade Fiscal de 2000 e pelo processo de municipalização do sistema de saúde brasileiro. Em conjunto, tais elementos significaram a redução do espaço de intervenção do Ministério da Saúde na gestão e regulação do trabalho em saúde, reduzindo sua governança sobre as condições e vínculos de trabalho no SUS.
O processo acelerado de desconstrução dos direitos do trabalho observado nos últimos anos amplia o desafio de garantir condições dignas de trabalho para as trabalhadoras e trabalhadores do SUS. No presente se multiplicam as formas de vínculo precarizado. Em muitos municípios se observam fenômenos como o da “pejotização” (Levi et al., 2022), no qual profissionais de saúde são contratados como pessoas jurídicas, como “empresas” para trabalharem em serviços públicos de saúde. As condições e a natureza dos vínculos de trabalho no SUS se relacionam diretamente com outros desafios como o da distribuição e fixação de profissionais, dos múltiplos vínculos, da alta rotatividade que tanto impactam na viabilidade da oferta de serviços de saúde de qualidade. Há no campo da gestão do trabalho e da educação em saúde um longo caminho a ser trilhado.
Thais Vidaurre é pesquisadora bolsista Proep-CNPq no Observatório História e Saúde da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz).
Referências:
FRANCO, Thais de Andrade Vidaurre. A participação de instituições de ensino superior privadas na formação em saúde: marco regulatório, financiamento e as políticas setoriais. 2016. 116f. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) – Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.
LEVI, Maria Luiza et al. Médicos e terceirização: percepções de trabalhadores e gestores sobre as transformações recentes no mercado de trabalho. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 20, p. e00846199, 2022. Disponível em: https://www.scielo.br/j/tes/a/C5pyp9DnPZsLKk4vLgkQxGm/. Acesso em: 28 jun. 2023.
MACHADO, Maria Helena; XIMENES NETO, Francisco R. Guimarães. Gestão da Educação e do Trabalho em Saúde no SUS: trinta anos de avanços e desafios. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 23, n. 6, p. 1971-1979, jun. 2018.
PIRES-ALVES, Fernando; PAIVA, Carlos Henrique Assunção; HOCHMAN, Gilberto. História, saúde e seus trabalhadores: da agenda internacional às políticas brasileiras. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 13, n. 3, p. 819-829, jun. 2008.