24/03/2017
Saúde Amanhã
“Sem investimento em políticas públicas, o Estado brasileiro empobrecerá junto com a população e não terá condições de mitigar as causas que levarão pessoas a desenvolver mais doenças e a morrer mais precocemente”. A previsão é do sanitarista Paulo Buss, diretor do Centro de Relações Internacionais da Fiocruz (Cris/Fiocruz) e ex-presidente da Fundação. Nesta entrevista, ele comenta a contradição entre a política de austeridade fiscal determinada pela Emenda Constitucional 55 (EC 55) e a garantia da saúde como direito de todos, conforme preconiza a Constituição Federal. “Hoje, a política fiscal favorece os ricos e sobrecarrega os pobres, pois está centrada no consumo das famílias e não sobre as grandes riquezas. Enquanto o modelo de desenvolvimento vigorar sob essas condições, as pessoas vão perder qualidade de vida, vão adoecer mais e o sistema de saúde terá menos condições de atendê-las plenamente”, afirma.
Qual a importância de estudos sobre determinantes sociais da saúde para a prospecção estratégica do setor?
Paulo Buss: Os determinantes sociais da saúde condicionam a situação de saúde da população e, também, a organização e o funcionamento do sistema de saúde. Conhecer como os determinantes sociais da saúde se expressam hoje, acompanhar a sua evolução e prospectar sua expressão no futuro é fundamental para caracterizar as necessidades sociais, econômicas e epidemiológicas da população. Este esforço é essencial, ainda, para que seja possível avaliar a capacidade da sociedade e do Estado responderem às demandas geradas por todas essas macrocondições que caracterizam o processo de saúde e doença. Diversos estudos sobre os determinantes sociais da saúde, como os que foram publicados na edição especial do International Journal for Equity in Health, mostram diferentes dimensões do sistema de saúde e como elas são influenciadas por questões sociais e econômicas. Essa abordagem é estratégica para que seja possível encaminhar propostas de ação capazes de superar as inaceitáveis desigualdades que persistem no acesso ao sistema de saúde brasileiro.
Alguns fenômenos sociais – ou fatores de risco para doenças crônicas – nos ajudam a explicar as condições de saúde da população, como o sedentarismo, o tabagismo ou consumo excessivo de álcool. Esses são os fenômenos mais fáceis de serem identificados, porém outras questões mais estruturais devem ser observadas com atenção pelo sistema de saúde, como o agravamento da pobreza e o acesso escasso aos sistemas de saúde e de saneamento básico. Essas condições sociais que afetam diretamente a saúde das pessoas são expressões do modelo de produção, consumo e distribuição de bens, riquezas e poder, que é extremamente desigual no Brasil. Então, ao olhar para uma situação de saúde em especial – como a desnutrição, por exemplo – não podemos nos esquecer que ela está inserida na estrutura de nossa sociedade e é moldada pelos grandes determinantes sociais: renda, acesso a trabalho e emprego, à educação, à moradia. Esses, sim, são os verdadeiros determinantes da situação de saúde da população. São variáveis que podem e devem ser previstas, no sentido de antecipar cenários e minimizar problemas. E, para realizar a prospecção de futuro do sistema de saúde, é estratégico acompanhar e prever tanto as necessidades que surgirão quanto a capacidade de responder a essas demandas.
Estudo do Banco Mundial aponta que o número de pessoas vivendo na pobreza, no Brasil, subirá de 2,5 milhões para 3,6 milhões em 2017. Quais serão os impactos para o sistema de saúde?
Paulo Buss: Este quadro deriva da importante crise econômica que estamos vivendo. Estamos assistindo ao aumento do desemprego e, consequentemente, da pobreza. O Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome também prevê que muitas pessoas que já haviam saído do Bolsa Família voltarão a receber o benefício, pois retornarão à pobreza. O aumento da população mais desfavorecida economicamente é comum em períodos de recessão econômica, sobretudo no contexto de um ajuste fiscal tão questionável quanto o proposto pela EC 55. Não há nenhuma surpresa. Todo ciclo que combina crise econômica e austeridade fiscal, sem considerar o papel do Estado como motor da renovação econômica, como ocorre atualmente no Brasil, levará ao aumento da pobreza.
Esse processo de crise, desemprego, redução de salários e perda de direitos coloca uma pressão direta sobre o sistema de saúde porque, além de comprometer o seu financiamento, gera piores condições de vida para a população. Empobrecer significa ter pior acesso à alimentação saudável, à habitação adequada, ao saneamento básico, à educação, ao sistema de saúde e a outros bens e serviços essenciais à vida. Se o Brasil não tiver sistemas de proteção social fortes, capazes de mitigar os efeitos da crise econômica sobre a qualidade de vida da população, as taxas de morbidade e mortalidade crescerão muito nos próximos anos.
Hoje, a política fiscal favorece os ricos e sobrecarrega os pobres, pois está centrada no consumo das famílias e não sobre as grandes riquezas. Enquanto o modelo de desenvolvimento vigorar sob essas condições, as pessoas vão perder qualidade de vida, vão adoecer mais e o sistema de saúde terá menos condições de atendê-las plenamente. Considerando a capacidade mitigatória dos sistemas de proteção social, ao contrário do que ocorre hoje, o Brasil deveria investir em políticas públicas para proteção à saúde, com serviços melhor organizados e adequados às características locais; à habitação, com garantia de saneamento básico; ao emprego; e ao desempregado. Sem investimento em políticas públicas, o Estado brasileiro empobrecerá junto com a população e não terá condições de mitigar as causas que levarão pessoas a desenvolver mais doenças e a morrer mais precocemente. É uma contradição nítida.
O Brasil está envelhecendo e passa, também, por uma transição epidemiológica – processos que tendem a se intensificar nas próximas décadas. Como o setor Saúde deve se preparar para este cenário?
Paulo Buss: Num cenário em que 26,7% da população brasileira será de idosos, como o previsto para 2060 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), novos serviços, programas e profissionais de saúde serão necessários. Os brasileiros estão vivendo mais e vidas mais longas – e mais saudáveis – requerem a transformação do sistema de saúde, com ações efetivas de prevenção e promoção da saúde. Não bastarão, apenas, hospitais, CTIs, centros de doenças. Serão necessários verdadeiros centros de saúde. Isso implica uma nova forma de estruturação e organização do SUS, centrada na Atenção Básica, com profissionais, serviços e programas que orientem a população sobre atividade física e alimentação saudável, que estejam preparados para lidar com desafios como o alcoolismo e a depressão, que promovam grupos de convivência e interação social. O sistema de saúde precisa mudar, se adaptar às diversas fases da vida. Esta é a exigência da terceira idade, que só poderá ser atendida com investimentos massivos em prevenção e promoção de saúde.
Tendo como Norte a Constituição Federal e o direito à saúde, todas essas mudanças demográficas apontam para a necessidade de repensarmos a organização do sistema de saúde, de forma a garantir a universalidade e a equidade. E, para isso, não é preciso disponibilizar, em todos os municípios, todas as tecnologias aplicáveis a todas as doenças. Será preciso, como já se vem trabalhando, formar regiões de saúde ou consórcios municipais, a fim de a reunir em um território comum necessidades e soluções. Nesse cenário, os modelos de financiamento e de organização do sistema de saúde devem ser outros. A lógica não pode mais ser, apenas, Governo Federal e Ministério da Saúde, governos estaduais e secretarias estaduais, governos municipais e secretarias municipais. É necessário um nível intermediário entre os estados e os municípios, que concentrem, em algumas cidades, serviços que serão ofertados para várias outras.
Que ações e políticas são necessárias, no presente, para garantir um sistema de saúde público e de qualidade, com universalidade, equidade e integralidade, no horizonte dos próximos 20 anos?
Paulo Buss: Infelizmente, as políticas necessárias estão no extremo oposto das propostas atualmente em curso no Brasil. A redução das iniquidades em saúde requer recursos. É impossível fugir desta realidade ou, ao menos, contorná-la. O Brasil gasta muito pouco com Saúde, em comparação a outros países latino-americanos, como Argentina e Chile, para não citar França ou Inglaterra. O financiamento sustentável do SUS é indispensável. De outra forma, não será possível oferecer universalidade, equidade e integralidade na atenção à saúde. Este é o risco que corremos hoje, com a EC 55, que reduzirá os investimentos em Saúde nos próximos 20 anos – horizonte marcado pelo crescimento e pelo envelhecimento da população e, consequentemente, pela necessidade de respostas mais complexas às demandas de saúde.
Combinar esta política de austeridade fiscal com o crescimento e complexificação das demandas de saúde da população é uma contradição irremediável, que moldará o futuro do país e do sistema de saúde. Não ampliar os recursos para a Saúde nos próximos 20 anos é assumir que o Estado não cumprirá a determinação constitucional de garantir a saúde como direito de todos. O primeiro passo para mudar este cenário é ter vontade política para reafirmar a Constituição Federal de 1988, que define a saúde como direito de todos, a ser garantido pelo Estado. No entanto, o que vivemos hoje é o desmonte de um estado de bem-estar social. A sociedade brasileira precisa definir qual será o projeto de desenvolvimento do país – e como se organizará para sustentá-lo financeiramente. O ano de 2018 será decisivo nesse sentido, quando a população terá a oportunidade de optar pelo caminho da manutenção dos direitos conquistados ou pela dissolução do Estado provedor.