09/09/2016
Por Juliana Krapp/ Portal Fiocruz
O convite, direcionado a todos os cidadãos, chegou até pelas contas de luz e de gás, em diferentes cidades do país. Em voos de avião, comandantes incrementaram seus tradicionais pareceres meteorológicos com o conclame: a 8ª Conferência Nacional de Saúde tomaria lugar em Brasília. Padre Albano, o famoso sacerdote progressista vivido por Cláudio Cavalcanti na novela Roque Santeiro, de Dias Gomes, também foi garoto-propaganda da Oitava. Entrou em cena abordando a importância de debater a saúde como direito, enquanto, no cenário, um cartaz orientava sobre como se inscrever no encontro.
Talvez a saúde brasileira nunca tenha estado sob tantos holofotes quanto naquele ano de 1986. A surpreendente mobilização popular que levou mais de 4 mil pessoas ao Ginásio Nilson Nelson, na capital federal, é resultado da conjugação de um momento único de euforia nacional — a abertura política após os anos de Chumbo — com um grande esforço de comunicação.
Vídeo do Núcleo de Estudos de Saúde Pública (Nesp), da Universidade de Brasília (UnB), mostra comercial de TV sobre a 8ª Conferência
“A 8ª Conferência foi um evento amplamente divulgado tanto no campo da saúde coletiva como na mídia de forma geral”, afirma a pesquisadora Celita Almeida, que se debruçou sobre os acervos do encontro para elaborar sua dissertação de mestrado, defendida na Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz).
Outro exemplo desse empenho na divulgação é o comercial de TV que foi exibido, em horário nobre, nas semanas anteriores à conferência. Nele, o ator Milton Gonçalves entrava em cena proclamando: “Claro, saúde é um dever do Estado e nosso direito. Não termina mesmo que você esteja desempregado. Na 8ª Conferência Nacional de Saúde vamos definir esta e muitas outras questões para que todos os nossos direitos ligados à saúde sejam garantidos. Através dos nossos sindicatos e associações, vamos estudar a melhor maneira de organizar o setor de saúde. Não dá mais para continuar empurrando a miséria com a barriga!”
Trabalho de poucos
“Mais do que uma [simples] divulgação, o comercial convocava a população para participar da conferência e decidir sobre as questões de saúde que ali seriam discutidas”, ressalta Celita. “O cenário fictício também dava indícios acerca do debate que seria levado à Oitava: uma favela cujos atores percorriam um espaço aparentemente insalubre marcado pela pobreza e pela doença. A fala do ator principal, relacionando a miséria ao estado de saúde, sugeria a tônica do debate que seria levado a Brasília: um conceito de saúde ampliado e uma reforma efetiva no setor saúde, de cunho estrutural.”
O comercial, assim como a inserção na novela, tinha o objetivo de divulgar a conferência de forma ampla e irrestrita, ou seja: mesmo para aqueles que não estavam envolvidos diretamente com o setor saúde. No caso de profissionais, estudantes e pesquisadores da área, há que se destacar o papel fundamental que o programa Radis (Reunião, Análise e Difusão de Informações sobre Saúde) teve como espaço inovador de divulgação e de debate.
Naqueles meados dos anos 80, havia inúmeros desafios para criar estratégias de comunicação que lançassem luz a eventos como a Oitava. A verba para divulgação era exígua e o trabalho, colossal. Quem conta é Christina Tavares, assessora de Comunicação da conferência e jornalista da Fiocruz por mais de 20 anos. “Sabíamos [no movimento sanitário e no grupo que organizou a Oitava] que nossas propostas eram revolucionárias e que a comunicação precisava ter um papel central nesse processo de debate e de renovação. Do contrário, não conseguiríamos conquistas. Ao mesmo tempo, os profissionais envolvidos nesse trabalho eram muito poucos. Três ou quatro, contando comigo. Eu nos auto intitulava ‘Exército de Brancaleone’”, brinca, fazendo referência à comédia italiana centrada nas aventuras de cavaleiros pobres, porém intrépidos e algo românticos.
Capa de O Globo de 20 de março de 1986 destaca o discurso de José Sarney na conferência
O cartaz que convocava para a conferência, e que passou a integrar o cenário da novela Roque Santeiro, foi escrito, à mão, pela própria Christina, que também cuidou para que chegasse à produção do folhetim as informações sobre o encontro. Ela circulou pelas redações de jornal, convidando para a Oitava. Procurou fazer contato com rádios do Brasil todo — “em grande parte do país, essa era e ainda é a melhor forma de divulgação”. E tratou de bolar táticas que fugissem do trivial — caso da divulgação via conta de luz e dos alertas nos voos comerciais.
Censura à divulgação científica
Entre 17 e 21 de março, foi grande a presença de repórteres no estádio de ginástica de Brasília. A 8ª Conferência foi manchete nos principais jornais do país. Nem sempre o tom da cobertura fez justiça ao teor do que estava sendo discutido pelos delegados — a indignação dos representantes do setor privado, que boicotaram o encontro, acabou ganhando mais destaque do que as propostas, em algumas das reportagens. Mas, de todo modo, as matérias jornalísticas acabaram dando visibilidade inédita ao campo de disputas que marcava — e ainda marca — a saúde no Brasil.
Antes da Oitava, vale lembrar, o enlace entre comunicação e saúde vivia uma situação bem diferente. A censura infligida pelo governo militar buscava escamotear os problemas de saúde pública do país. “Na Fiocruz, era proibido divulgar epidemias e surtos de doenças. E mesmo algumas matérias de divulgação científica acabavam sendo censuradas, o que atrapalhava o processo de prevenção. Nosso trabalho se limitava a divulgar congressos. A relação dos cientistas com os jornalistas era muito ruim: eles nunca queriam nos receber”, lembra Christina.
No período ditatorial, segundo ela, a saúde “só saía na página policial”: “Queríamos fazer com que o tema passasse, enfim, a ocupar outras editorias. E também para isso a conferência de 86 foi importante. Ali, naqueles dias de intenso trabalho e debate, a Comunicação foi se revelando como um elemento central para as lutas da saúde, para as políticas públicas e para o SUS, que nasceria dali”.
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