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Ciência e cidadania marcam o lançamento do Dicionário de Favelas Marielle Franco

Grupo de samba

25/04/2019

Por: Luiza Gomes e Letícia Caroline* (Cooperação Social da Fiocruz)

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Uma biblioteca pública situada no campus da maior instituição de ensino e pesquisa em saúde pública da América Latina, abraçado por dois complexos de favelas da cidade do Rio de Janeiro: esse foi o local escolhido para o lançamento do Dicionário de Favelas Marielle Franco, na última quarta-feira (16). Trata-se da Biblioteca de Manguinhos do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz), que, em seu 33º aniversário, recebeu a cerimônia. 

A curadoria do evento abriu espaço para a diversidade de vozes e olhares que incidem sobre o conhecimento produzido nas e sobre as favelas, convidando, para isso, artistas e coletivos das periferias cariocas para apresentarem seus trabalhos. Poesia falada, literatura, rap e outras manifestações culturais tematizaram as realidades vividas e as estéticas desses territórios. O lançamento recebeu representações do Coletivo Marginal e Movimento Poesia de Esquina, da Cidade de Deus, na Zona Oeste do Rio; da RedeCCAP, de Manguinhos; Museu da Maré, e teve cobertura da Agência de Notícias das Favelas.

Abrindo a programação, o grupo Música na Calçada – composto por ex-alunos da Escola de Música de Manguinhos – apresentou seu repertório. Uma das composições rememorava a vereadora assassinada em abril do ano passado, Marielle Franco, homenageada também na abertura do evento. “Lembro Marielle, valente, guerreira/ De Chica da Silva, toda mulher brasileira/ Crescendo oprimida pelo patriarcado”, diz a letra de Mulheres, versão de Doralyce e Silvia Duffrayer para o samba de mesmo nome que, composto por Toninho Geraes, foi sucesso na voz de Martinho da Vila. A versão interpretada pelo Música na Calçada, espécie de resposta feminista à canção que reproduz estereótipos sobre a mulher, tem virado hit nas rodas de sambistas do sexo feminino.   

“Queríamos uma música que lembrasse a luta da Marielle. No nosso repertório, sempre trabalhamos as questões de classe, de favela, de raça, que é o que a gente vive, não fazer isso seria um equívoco – ainda mais na Fiocruz, que tem um campus que está dentro da favela [ela se refere à proximidade do campus Manguinhos com os Complexos da Maré e de Manguinhos]”, afirmou Cristine Ariel, violonista e arranjadora do grupo. 

Nísia Trindade, presidente da Fundação Oswaldo Cruz, enfatizou a importância de a instituição contribuir para maior integração efetiva e simbólica da favela ao ambiente urbano. “Nesse momento, a instituição tem que olhar a cidade e olhar esse território onde ela está e saber que tem um papel diante de um projeto, de um encontro com valores radicalmente democráticos”, enfatizou Nísia, primeira mulher e cientista social a presidir a instituição.   

Publicar as vozes silenciadas

A proposta de congregar e publicar saberes de fontes diversas foi além das páginas (virtuais) do dicionário – construído na plataforma Wiki. Os livros produzidos pela Esquina Editorial - editora que publica moradores de periferias cariocas - estiveram expostos ao longo do dia no Salão de Leitura.  A editora foi lançada em janeiro deste ano, mas a proposta veio de mais longe, como desdobramento do Movimento Poesia de Esquina. O movimento cultural se iniciou em 2011 com saraus e oficinas literárias na Cidade de Deus, na Zona Oeste, e hoje transita por outros pontos periféricos da cidade, em escolas, praças e bares. 

Segundo sua idealizadora, a antropóloga e escritora Viviane Salles, a editora tem no livro um instrumento de transformação social. “A própria editora é fruto do entendimento de que é muito importante que a gente publique essas vozes da favela. Não adianta só falar poesia e reunir pessoas; o livro circula e tem o potencial de também gerar novos leitores”, argumentou. No mesmo dia do evento, a editora lançava seu terceiro título: A vida é um poema, da poeta negra Tuca Muniz, moradora da Cidade de Deus, hoje com 85 anos.  

Conhecimento produzido a partir da experiência

Desde 1996, o Rapper Fiell mobiliza coletivos culturais em torno do movimento Hip Hop Santa Marta, que teve como um de seus fundadores o músico Marcelo Yuka, falecido em janeiro. Fiell, morador da favela que dá nome ao movimento, foi um dos convidados para compor a grade de programação. Em entrevista à reportagem, ele afirmou a importância histórica da informação de qualidade e da capacidade de análise crítica dos contextos social e político no movimento do rap. “O quinto elemento do hip hop é informação”, afirmou ele, em referência aos elementos que compõem a linguagem da cultura hip hop, tradicionalmente: o grafite; o DJ; o MC (mestre de cerimônia); e os b-boys e b-girls (artistas de dança urbana). “O rap é uma crônica, trazemos a realidade da onde vivemos, da cidade, do país, do mundo. Nos anos 90, nós tínhamos que conhecer para poder fazer rap. Quem, na roda de rap, não trocasse essa ideia, não conhecesse as lideranças negras, não estava enturmado. Tínhamos muitos núcleos de estudo no início. Até 2002, o rap era muito politizado”, recordou ele, que também participou da construção do dicionário. 

Além de contribuir para o resgate da memória das favelas e da cidade do Rio, o dicionário é um espaço virtual para congregar o conhecimento sobre as favelas de forma interdisciplinar e interinstitucional, e foi forjado a partir da articulação entre pesquisadores-moradores e instituições com larga tradição de pesquisa e extensão nessa área, tais como Fiocruz, Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (Ippur/UFRJ), Centro de Estudo e Ações Culturais e de Cidadania em Cidade de Deus (Ceacc), Grupo Eco Santa Marta e Instituto Raízes em Movimento. Pela Fiocruz, participaram do processo de construção do projeto a Cooperação Social da Presidência, o Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict), e a Casa de Oswaldo Cruz (COC). 

* Letícia Caroline é estagiária na Coordenação de Cooperação Social da Fiocruz

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