27/04/2017
Fonte: Portal Saúde Amanhã/Fiocruz
Tema do Dia Mundial da Saúde, comemorado em 7 de abril, a depressão vem chamando atenção da Organização Mundial da Saúde (OMS) e de sistemas de saúde em todo o mundo: mais de 300 milhões de pessoas convivem, hoje, com o transtorno, 11 milhões somente no Brasil. Um desafio novo para a Saúde Pública, que encontra eco no modelo de desenvolvimento e no estilo de vida da sociedade contemporânea. Nesta entrevista concedida ao Portal Saúde Amanhã, o psiquiatra Jurandir Freire Costa, pesquisador emérito do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/UERJ), comenta a explosão de casos de depressão no Brasil e no mundo e propõe um olhar mais abrangente sobre a doença, que vai além da medicalização patrocinada pela indústria farmacêutica. “Daqui a vinte anos, talvez, possamos vir a compreender a depressão psiquiátrica para além da indústria farmacêutica. E, então, vir a pesquisar, com o respeito que exige essa enigmática forma do sofrimento humano, o que é a depressão”, afirma Jurandir.
Por que dedicar o Dia Mundial da Saúde à depressão? Qual o impacto da doença no Brasil e no mundo e quais as perspectivas para as próximas décadas?
O tema é, sem dúvida, relevante. Mais importante, contudo, é o mote da campanha: “vamos conversar?”. O convite é fundamental, pois, ao longo dos últimos 30 anos, a depressão se tornou uma espécie de “joia da coroa” da indústria farmacêutica. Ou melhor, a sua “bijuteria”, uma vez que a propaganda em torno da eficiência dos antidepressivos de última geração nem de longe corresponde aos fatos. É verdade que progressos significativos foram conquistados na área da Psicofarmacoterapia, mas ainda resta muito “a conversar” sobre depressão. Duas questões, ao menos, precisam ser tratadas em maior profundidade: o que se entende por depressão? E como chegar a um diagnóstico padronizado e aceito em todas as culturas?
Então, o que é depressão? É tristeza ou dor moral? É fraqueza da vontade? É psicastenia e diminuição do tônus psicomotor? É lentificação do pensamento ou bradipsiquia em geral? É perseverança de pensamentos obsessionais sobre fantasias de ruína? É ansiedade? São os distúrbios do sono? Ou é tudo isso? Se for tudo isso, como um psiquiatra pernambucano da cidade de Caruaru; um indonésio de Bali; um russo de Irkutsk; um americano de Albuquerque; um francês de Vannes; um italiano de Bergamo; um usbeque de Tashkent ou um iraniano de Hanadan poderiam chegar a um acordo científico sobre o “diagnóstico anglo-americano da depressão” pela observação de certas condutas humanas próprias a seus respectivos contextos de vida? Devemos ser mais modestos e ouvir com mais atenção as advertências de sociólogos, antropólogos, historiadores das mentalidades, psicólogos sociais e outros especialistas que alertam para o etnocentrismo que ainda caracteriza o processo de classificação de doenças. Somente superando este obstáculo tão arraigado, e com muita prudência, possamos talvez isolar os fatores neurais da depressão e propor, com mais segurança, uma terapêutica psicofarmacológica. Até lá, uma postura mais comedida em relação à prescrição indiscriminada de medicamentos seria o caminho mais recomendado.
Qual o impacto dos difíceis tempos que vivemos no Brasil e no mundo sobre o sofrimento psíquico das pessoas?
São questões complexas. Para abordá-las, é preciso isolar os tópicos mais relevantes de cada uma e aprofundar os conhecimentos e a prática que temos sobre o assunto. Nosso grupo de investigações no Instituto de Medicina Social da UERJ tenta centrar o foco da discussão sobre o conceito de “sofrimento social”. O conceito não é novo, ainda tem contornos incertos, mas é promissor. Muito do que chamamos “depressão” nada mais é que uma determinada manifestação do sofrimento. Sofrimento este que pode ser mais ou menos intenso, racionalmente motivado ou duradouro; mais ou menos comprometedor de funções somáticas, inibidor de atitudes pragmáticas ou invalidante, no que concerne às relações amorosas, sexuais, profissionais, familiares e à sociabilidade em geral. Se é verdade que cada sofrimento é uma experiência única, singular e, muitas vezes, incomunicável, também é verdade que muitos outros sofrimentos são criados por situações socioculturais comuns a comunidades locais ou globais, como vivenciamos hoje.
Ora, as mudanças políticas, econômicas, sociais e culturais que estamos testemunhando certamente produzem um tipo de sofrimento que, facilmente, pode ser “diagnosticado” como “depressão”. Na minha opinião, porém, esta seria uma atitude apressada. Basta evocar grandes clássicos das teorias do sofrimento social para perceber como muitas questões se elucidam, passando da esfera medicalizadora para a sociocultural. Marx e o sofrimento social da alienação dos trabalhadores do século XIX europeu, que se traduzia em degradação física, humilhação, violência contra os mais fracos, dentre outras expressões. Max Weber, ao mostrar que a racionalização burocrática da produção capitalista destruía a imagem moral dos indivíduos como criadores ou produtores de seu trabalho, tornando-os “repetidores” de gestos e objetivos mecânicos. Em outras palavras: burocratizar ou racionalizar o mundo veio a desencantá-lo, a “desmagificá-lo”, deixando os sujeitos órfãos de transcendência, sem propósitos e com o sentimento de que a vida não vale a pena ser vivida. Enfim, recuperemos Durkheim e sua magistral descrição do indivíduo solitário, vítima da anomia, da desfiliação social, sem Deus nem lei, exceto aquela capaz de impor-se ao outro pela força, ou a produzida pela fraqueza com que se habitua a ceder a qualquer impulso de satisfação imediata.
O que podemos esperar para os próximos anos?
Tentemos atualizar o quadro: a precarização dos trabalhos e da vida; a liquefação de amores e vínculos, como diz Bauman; a trivialização das imagens midiáticas do Mal, acompanhadas do sentimento de impotência; o desenraizamento territorial ou moral, dada a experiência da obsolescência programada de tudo, dos cortes de cabelo ao valor do sexo e da religião. Não há dúvida: a vitória do que Bauman chamou de “cultura do lixo” justifica o sofrimento psíquico-moral de qualquer adulto minimamente consciente do que se passa ao seu redor.
A “cultura do lixo”, ainda segundo Bauman, busca tornar a maioria dos sujeitos “refugos”, ou seja, torná-los uma “maioria disfuncional”, porquanto insuficientemente violenta e inescrupulosa para explorar o outro, destruir o ambiente, rebaixar moralmente os que são diferentes, pisotear sobre os ideais de igualdade, liberdade e fraternidade. Em suma, disfuncional, mas não viciosa o bastante para ser membro vip do infernal clube do “mercado”.
Qualquer adulto atento o bastante ao que vem ocorrendo em nossa sociedade pode vir a experimentar, de modo mais ou menos passageiro, episódios de sofrimento oriundos de desejos de vingança reprimidos; desalento por ver ideais de vida escarnecidos pelos mafiosos no poder; insegurança pelo seu futuro e dos seus entes queridos. Isto é “depressão”? Bem, precisamos falar sobre isso… Daqui a vinte anos, talvez, possamos vir a compreender a depressão psiquiátrica para além da indústria farmacêutica. E, então, vir a pesquisar, com o respeito que exige essa enigmática forma do sofrimento humano, o que é a depressão.
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