26/02/2016
Por: Raiza Tourinho e Graça Portela (Icict/Fiocruz)
De um lado, um cenário de uso indiscriminado de agrotóxicos, intoxicações, do outro, cultivos mais sustentáveis, relações de trabalho e comercialização mais justas. É essa a solução que a agroecologia promete oferecer ao Planeta. Mas dá mesmo para sonhar com um futuro sem agrotóxicos?
A vice-presidente executiva do Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para Defesa Vegetal – Sindiveg (que representa a indústria dos agrotóxicos), Silvia Fagnani, argumenta que, considerando o modelo de produção “adotado” no Brasil, o uso de agrotóxicos “é a única forma viável de suprir a demanda por produção de alimentos e energia necessária para alimentar nove bilhões de pessoas em 2050”.
Fagnani não deixa dúvidas do pensamento que rege o modelo de produção agrícola hegemônico no Brasil: “O uso da tecnologia protege os cultivos, aumentando a produtividade, e poupam (sic) tempo de tarefas e, sobretudo, o enorme esforço físico dos agricultores e trabalhadores rurais. O consumo de defensivos agrícolas no Brasil é demandado, além disso, pelo fato de sua agricultura estar sob o clima tropical, o que exige emprego sistemático de tecnologias para controle de pragas e doenças. Além de contar com até três safras anuais, a produtividade no Brasil cresce de maneira muito mais acelerada do que a área plantada, aumentando a disponibilidade de alimentos preservando o meio ambiente”.
Para a presidente da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA-Agroecologia) e professora da Universidade Federal de Viçosa, Irene Maria Cardoso, a agroecologia é sim capaz de alimentar o mundo. “O que a agroecologia não é capaz é de alimentar o agronegócio, porque tem uma cadeia de insumos para agricultura que coloca o agricultor subserviente à indústria. Este pensamento de que o agronegócio alimenta o Brasil, não é verdade. Ele alimenta a balança comercial. Se não repensarmos o Brasil como produtor primário, vamos ficar refém do agronegócio. Então é o modelo de desenvolvimento que tem de ser repensado”, afirma.
Esse novo modelo, segundo ela, passa por cadeias curtas de comercialização, cortando diversos intermediários, além da valorização e utilização do saber tradicional, e não apenas o técnico. “É uma outra lógica. Antes, quem sabia tudo da agricultura eram os técnicos. Só que esses agricultores desenvolveram conhecimento na compreensão ecológica e cultural dos sistemas alimentares, porque quando eles manejam tem um componente cultural, não é só técnico. Esse componente cultural, de conhecimento dos processos e interações dos sistemas alimentares, foi desenvolvido em 10 mil anos. Como é que pode pegar esse conhecimento e jogar no ralo? Sem ele, a agroecologia não vai sustentar o mundo”, afirma Irene Cardoso.
Mas, como fazer que esse conhecimento seja identificado, valorizado e reconhecido? A pesquisadora da Universidade Federal de Viçosa afirma que “é preciso dizer aos cientistas que eles não são os únicos detentores da verdade”: “Isso é derrubar um paradigma científico. Eles falam que agroecologia não pode alimentar o mundo, porque não querem perder o lugar na produção de alimentos no mundo. Uma produção de qualidade questionável, que traz resultados danosos ao meio ambiente e ao homem, comprovado em inúmeros estudos científicos. O que a agroecologia não é alimenta é este pensamento que quer se beneficiar de uma agricultura perversa, com os agricultores, com os consumidores, com a natureza”, destaca.
Nesta parte editada do documentário "Caminhos do Rio Experiências em agroecologia no Rio de Janeiro", produzido pela ANA - Articulação Nacional de Agroecologia, é possível ver um pouco de como esse conhecimento é identificado e aproveitado. Veja o que dizem Seu Nelson e sua filha Indeco, agricultores orgânicos, e a pesquisadora Mônica Cox, do Departamento de Geografia Urbana, da Universidade Federal Fluminense (UFF)
Espaços de reencantamento
Para o pesquisador do Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador (Ensp/Fiocruz), Marcelo Firpo, o fortalecimento da pauta da agroecologia passa pela parceria com a saúde coletiva. “A promoção da saúde é fundamental para se pensar em outro modelo de sociedade”, diz.
As feiras agroecológicas nas cidades seriam justamente os locais de construção deste novo modelo. “São espaços profundos de outro tipo de produção de conhecimento, de relação solidária, que resgatam também o processo de relação com as crianças modernas, que vão descobrir que o alimento não é algo que está nas prateleiras do supermercado, dentro de caixinhas coloridas. É preciso reencantar também a produção de alimentos no processo de produção de vida”, diz.
Segundo ele, a feira é um espaço importante, porque se compra produtos que estão fora das prateleiras convencionais. “Os supermercados lucram bastante em relação ao produtor. As feiras orgânicas têm o mecanismo de venda mais direta, sem intermediários”, diz. Ele ressalta que nas feiras existe ainda um processo cultural e político de interlocução entre consumidores e produtores, sobre como os produtos foram obtidos, a qualidade dos alimentos etc. “Há uma relação direta com os produtores muitas vezes de uma agricultura periurbana que é totalmente invisibilizada dentro da própria cidade”.
O Rio de Janeiro conta hoje com 17 feiras orgânicas pela cidade (no Brasil, ao todo, são 500). É um modelo que vem dando certo. Em 2006, no encontro estadual preparatório ao 2º Encontro Nacional de Agroecologia (ENA), foram mapeadas 32 experiências agroecológicas no Rio de Janeiro. Contudo o número já deve ser bem maior – uma vez que somente a Associação Agroecológica de Teresópolis conta com 50 unidades produtivas associadas.
Veja abaixo uma parte do documentário "Caminhos do Rio Experiências em agroecologia no Rio de Janeiro", produzido pela ANA - Articulação Nacional de Agroecologia (assista ao lado, a íntegra do documentário), que aborda as experiências agroecológicas. No vídeo, os depoimentos dos agricultores orgânicos Levy Gonçalves de Oliveira e Paulo Aguinaga, da Associação de Produtores Orgânicos do Vale do Rio Preto (Pretópolis/RJ) e da consumidora Patrícia.
A diversidade pelos neo-rurais
Uma dessas unidades é a Fazenda Arca de Noé, em Sapucaia (RJ), tocada por um grupo de quatro amigos oriundos do ‘êxodo urbano’. “Não estamos tão distantes assim dos nossos avós”. É deste modo que Hugo Souza justifica a opção de trocar a agitação da cidade grande pela calmaria do campo. Ele chegou a cursar Sociologia, mas foi mesmo com a pá e a enxada que encontrou seu caminho.
O retorno ao campo tem sido tão constante que até foi cunhada uma denominação para quem ousa ir da capital ao interior: são os neo-rurais. E são eles, principalmente, que têm ficado à frente do processo de transição da agricultura quimicamente-dependente, que utiliza intensivamente agrotóxicos, para a agroecologia.
A ex-produtora cultural Silvana Pedroni, também parte do grupo, diz que os amigos e familiares que vivem na cidade se preocupam com uma “suposta falta de recursos”, como garantias trabalhistas, seguro do carro, ou plano de saúde. “São coisas que para a gente não faz a menor diferença”.
Por outro lado, nem sempre a aceitação dos neo-rurais é fácil, especialmente no âmbito das associações e espaços coletivos. “Alguns de agricultores tradicionais têm uma postura meio grosseira com pessoas de minha origem, médio urbana. ‘Anda meio manco’ às vezes. Eu procuro estar dentro da realidade dos caras. Eu sou agricultor. Entrei no mundo deles. Mas tem um lado, que não vou negar, de formação intelectual”, afirma o ex-economista Roberto Celig, o Beto, um dos fundadores e ex-presidente da Associação de Produtores Agroecológicos de Teresópolis e que, por vezes, é chamado para intermediar reivindicações da comunidade devido a maior facilidade de oratória.
A Fazenda Arca de Noé surgiu em 2010, por meio de um projeto para o cultivo de pinhão manso, uma planta utilizada para a produção de biodiesel. O cultivo da planta foi pensado dentro de um Sistema Agroflorestal (SAF) – um sistema que reúne as culturas agrícolas com as culturas florestais gerando um meio de produção sustentável, no qual os vários elementos da floresta plantada trabalham em simbiose.
O primeiro problema que eles se depararam na implantação do sistema foi a braquiária (um capim de pasto, considerado “praga” em alguns cultivos), que tomou conta do cultivo no início. Para solucionar o problema, eles iniciaram outros cultivos, como milho, feijão, abóbora e, por fim, a mandioca. Então, eles começaram a roçar a braquiária, na medida em que cuidavam da mandioca e que o margaridão (outro cultivo introduzido) sombreava a planta. “Se você tem estratégia, para a sequência do sistema, uma coisa vai puxando a outra. A proposta deste sistema é que seja gratificante seu trabalho aqui dentro”, diz Victor Rolomcherault, também produtor da Arca de Noé.
Foram mais de 20 espécies introduzidas e outras mais que surgiram naturalmente. Atualmente o principal produto da SAF é a banana, mas a agrofloresta também dá hortaliças e outros cultivos, como cana. “É um sistema vivo. É impressionante a quantidade de bichos que vem aqui: cachorro do mato, guaxinim, tatu. O milho que a gente produziu foi em grande parte para [consumido por] os animais”, afirma Victor.
No entanto, Hugo ressalta que a implantação de um sistema desses necessita de um contexto de comercialização. “Você pode processar esses [alimentos], agregar um valor naquilo ali. A implementação de uma agrofloresta tem que ser em um local pronto para receber estes produtos”, diz.
Uma parte dos produtos da Arca de Noé chega à Feira Agroecológica de Teresópolis já processada, em forma de bolo de aipim, geleia de jabuticaba, bolo de amendoim, pão de biomassa de banana verde e fubá de milho branco. Mas a fazenda vai além da agrofloresta: no local, ainda há criação de frangos, produção de compostagem e apicultura.
“Esta é uma pequena ilha. A região serrana é a que mais consome agrotóxicos em todo Estado. Dá para ver que a agroecologia vai muito além da simples troca de insumo: é um processo de fortalecimento da autonomia”, afirma o analista técnico da Cooperativa de Trabalho, Consultoria, Projetos e Serviços em Sustentabilidade – Cedro, Juliano Palm, sobre os cultivos agroecológicos na região.
Ex-operários da verdura
A Associação de Produtores Agroecológicos de Teresópolis nasceu em 2005, junto a Feira Agroecológica de Teresópolis, que funciona tradicionalmente às quartas e sábados na cidade. O produtor Roberto Celig afirma que o número de agricultores associados só cresce, mas que a marca da associação ainda é a união, como “uma família”. Questionado sobre os motivos que levam os produtores a começar a produzir alimentos agroecológicos, ele é categórico: “Quebra com o [cultivo] convencional, passa mal, fica doente [devido a exposição a agrotóxicos]”. Hugo Souza, também associado, explica: “O próprio viver dá uma castigada. Não é a gente que bate na porta”, diz.
De acordo com eles, a mudança da produção convencional para a agroecológica vai além da aplicação ou não de insumos químicos. “Na escala, quando você vai fazer conta com o tanto que se gasta com insumo, transporte etc., a pessoa pode até tirar uma receita maior, mas ainda está pensando na lógica anterior, de quantidade. É uma transição também este momento”, conta Silvana Pedroni.
Os agricultores são unânimes em afirmar que a vantagem não é financeira: afinal, embora o valor do produto seja maior, o manejo dos cultivos exige muito mais dos produtores, e consequentemente, a quantidade diminui. Até mesmo os insumos naturais têm valores mais elevados: a saca de ração orgânica para alimentar os frangos, por exemplo, custa em torno de R$ 100, o dobro da convencional.
O retorno é muito mais subjetivo e impalpável. Além da saúde, o prazer está, por exemplo, em cultivar alimentos diversos, de qualidade e de “verdade”, àqueles que os próprios agricultores consomem [é comum que os produtores que cultivam alimentos com os agrotóxicos tenham uma horta à parte para consumo próprio, realidade que se repete na região, segundo técnicos da Cedro, que acompanham 900 famílias].
Hugo acrescenta uma vantagem que a maioria dos produtores de sua região não possui: a feira. “A troca de energia é toda semana: as pessoas vêm e agradecem. Não é só dinheiro. É uma coisa que meu vizinho, que é agricultor de nascença, não tem”. Beto concorda: “As pessoas vão na feira bater papo. Todo mundo conversa”. Em Teresópolis, toda a produção convencional é escoada para os centros de distribuição como o Ceasa. A única feira da cidade é a agroecológica.
A verdadeira mudança preconizada pela agroecologia é profunda porque atinge exatamente a visão de mundo dos agricultores. “Meu vizinho ganha mais do que eu, com certeza. Ele planta um mundo de alface. Nem precisa sair de casa, que o atravessador vai na porta buscar a produção. Mas essa vida eu não quero. Ele é um operário da verdura”, enfatiza Beto.
E o futuro?
Em plena instabilidade econômica, as previsões do mercado de orgânicos são otimistas: após crescer 25% em 2015, a expectativa é de um aumento de 35% em 2016. “Tem muito para crescer, até porque o convencional está em baixa também”, acredita a agricultora Silvana Pedroni.
Já Beto, que começou vendendo na Cobal [em Botafogo, no município do Rio de Janeiro] no final dos anos 1980 e vendeu para supermercados, mas hoje só comercializa seus alimentos na Feira Agroecológica de Teresópolis, não está tão otimista. Segundo ele, o consumo de orgânicos está dentro da população há bastante tempo. “Quando a renda baixa acaba a moda. Agora vai entrar em uma estagnação”, diz.
A professora Irene Cardoso lembra que a agricultura familiar já alimenta o mundo – 70% do que vai para a nossa mesa já vem dos pequenos agricultores. “Nem todo agricultor familiar é agroecológico, mas todos podem se transformar em um”, diz. Ela reconhece avanços desde quando a agroecologia começou a ser germinada, na década de 1980, com mais agricultores e consumidores sensibilizados e mais manejos agroecológicos consolidados, em todas as regiões do Brasil.
Mas será que realmente teremos a chance de ver essa mudança de paradigma no modelo agrícola?
“Claro que a gente gostaria que toda a agricultura hoje fosse agroecológica. Mas entendemos que isso não é possível sem reforma agrária, sem uma utilização da água diferenciada: a agricultura usa água demais, projetos enormes de irrigação. E isso é uma construção da sociedade”, finaliza Irene.
Esta é a sétima reportagem da série Agrotóxicos: a história por trás dos números, realizada pelo Icict, com matérias sobre uso de agrotóxicos no Brasil. Os depoimentos dos agricultores colhidos nesta série de reportagens foram realizados na Caravana Agroecológica Sudeste - RJ.
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