10/09/2021
Karina de Souza (Cidacs/Fiocruz Bahia)
Estima-se que no Brasil mais de 11 mil vidas foram perdidas para o suicídio, de acordo com o Sistema de Informações em Mortalidade (SIM). Enquanto a sociedade comemora avanços que prolongam a longevidade, há um contexto que cria condições que conduzem alguém a esse desfecho − e não são apenas fatores psíquicos. Acreditar que, para além de doenças e transtornos mentais, fatores socioeconômicos estão atrelados a essa situação é o que move as ações da pesquisadora associada ao Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde (Cidacs) da Fiocruz Bahia e à Escola Médica da Universidade de Harvard, Daiane Machado.
Nascida em Alagoinhas (BA), Daiane Machado é psicóloga, mestre em Saúde Comunitária pelo Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e doutora em Saúde das Populações pela Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres. Usando Big Data, estuda os impactos de políticas públicas, como transferência de renda, na redução do suicídio.
Descreva sua pesquisa. Quais os métodos e conhecimentos a que recorre?
Daiane Machado: Eu tenho trabalhado com pesquisas em nível agregado e individuado. O que isso quer dizer? Quer dizer que tenho avaliado os fatores de risco em nível municipal, ou seja, quais fatores naquele município aumentam as taxas. Como também tenho focado em responder a perguntas em nível individual, como, por exemplo, se receber ajuda financeira do governo ajuda a prevenir o comportamento suicida. Tenho conseguido então aplicar os meus conhecimentos como psicóloga, juntamente com os meus conhecimentos em saúde coletiva, saúde pública e epidemiologia. Tem sido bastante gratificante.
Como avalia que essas pesquisas podem ajudar no problema?
Daiane: Espero que nossos resultados científicos, no mínimo, deem uma ideia de que algo precisa ser feito e alerte para a noção de que saúde mental é muito mais ampla do que apenas fornecer cuidados mentais (serviços de saúde e iniciativas específicas do campo da saúde) quando necessário. Se quisermos de fato prevenir suicídio, precisamos passar a enxergar esse sujeito como um todo, como um ser individual inserido num contexto social. Afinal, não existimos no vácuo, e é importante fornecer ambientes saudáveis, em que a dignidade, a conexão e a proteção socioeconômica sejam a prioridade máxima. É o mínimo para se pensar no bem-estar social necessário para a prevenção de suicídio.
Seu trabalho é feito em equipe. Pode falar sobre quem são esses outros profissionais e o que fazem?
Daiane: No Cidacs nós temos o privilégio excepcional de trabalhar com um time de pessoas multidisciplinar, onde integramos diversas competências para endereçar as perguntas de investigação. Eu tenho a honra de trabalhar, com um epidemiologista internacionalmente renomado, professor Maurício Barreto, e com um excelente time de psiquiatras, psicólogos e estatísticos (Luís Fernando Araújo, Flavia Alves, Elizangela Rodrigues, Machado, Erika Fialho, Jacira Araújo). Além de grandes times de excelência no Brasil na área de TI e operacional, envolvidos na produção das bases de dados e organização da instituição.
Como se dá sua parceria com Harvard e com a Fiocruz Bahia? São assuntos separados ou em conjunto?
Daiane: A parceria com Harvard se iniciou a partir do contato com o professor Vikram Patel, em Londres, durante o meu doutorado. Quando ainda morava lá tive a oportunidade de conhecer esse psiquiatra, considerado número um no mundo em global mental health e iniciar trabalhos em parceria. Os trabalhos se desdobraram e hoje ganham o olhar das duas instituições. Sou pesquisadora associada na Fiocruz Bahia e pesquisadora fellow na Escola Médica de Harvard. Só tenho a agradecer às duas instituições por acreditarem e apoiarem o meu trabalho.
Por que escolheu pesquisar suicídio? Sua pesquisa se destaca por introduzir fatores socioeconômicos no debate científico sobre suicídio. Como nasceu essa percepção ou tese sobre o assunto?
Daiane: Sempre quis que meu trabalho tivesse algum impacto na vida das pessoas. Sempre quis que ele ajudasse a mudar as coisas. Mais tarde percebi que isso está muito mais nas mãos dos governos do que nas mãos do pesquisador. Fornecemos evidências, mas se as políticas não forem implementadas, os mais pobres continuarão pagando o preço. O lugar, o sexo ou mesmo a cor em que você nasceu determina muito mais nossas vidas do que pensamos.
Lembro-me de testemunhar, ainda na infância, como cada um dos meus amigos vivia de maneira diferente. Nasci em um bairro pobre de uma pequena cidade no Nordeste, mas meu pai economizou todo o dinheiro que pôde para pagar uma escola particular para seus filhos. Então, eu me lembro quando ia visitar meus amigos da escola, costumava comer iogurte, frutas e biscoitos em suas casas. Mas, quando visitava uma amiga muito próxima (filha de um pedreiro que morava basicamente numa tenda na minha rua), comíamos farinha queimada com óleo.
Essa mistura tem baixo valor nutritivo e está longe de fornecer os nutrientes de que uma criança precisa. Me pergunto: como podemos então esperar que pessoas que sempre se alimentaram de maneira diferente, tiveram diferente acesso à educação, saúde etc, se desenvolvam da mesma forma na vida?
Eu sei que algumas pessoas conseguem mudar as coisas, mas essas são as exceções, a minoria. Negar isso significa negar a estatística, a matemática.
Que fatores socioeconômicos consegue apontar como associados ao suicídio?
Daiane: Os nossos estudos encontraram aumento das taxas de suicídio relacionado a maior desigualdade de renda nos municípios brasileiros, municípios com menor renda também apresentaram maiores taxas de suicídio e por fim, encontramos uma redução nas taxas municipais associadas com o aumento da cobertura do Bolsa Família.
Nota-se que há um debate em torno do discurso sobre suicídio para que fatores psíquicos e psiquiátricos prevaleçam. O fato de introduzir aspectos socioeconômicos elimina esses aspectos?
Daiane: O suicídio é um fenômeno multicausal. Costumo dizer que um óbito por suicídio fala mais sobre uma teia de fatores do que de simplesmente um único fator. No entanto, o impacto dos fatores socioeconômicos e dos fatores psiquiátricos podem variar, dependendo inclusive da região. Por exemplo, estudos indicam que entre 80% e 98% das vítimas em países desenvolvidos tinham associação com fatores psiquiátricos, enquanto, que esse número cai para 58% entre os países de baixa ou média renda. Desigualdade de renda também tem sido encontrada como não associada ao aumento de suicídio nos países desenvolvidos. Isso não quer dizer que desigualdade de renda não aumente o risco de suicídio. Esse resultado pode estar apenas indicando que a desigualdade de renda nesses países não é alta o suficiente a ponto de causar um aumento nas taxas. Pode também estar indicando que as medidas de proteção social, bastante consolidadas nesses países, conseguem dar conta de proteger a população mais economicamente vulnerável.
Nos países mais pobres não contamos com a mesma “sorte”, as taxas de suicídio têm sido associadas com desigualdade de renda e redução da renda. Em síntese, fatores econômicos e fatores psiquiátricos estão associados ao risco de suicídio e um fator não elimina o outro. Afinal, ainda se você preferir acreditar que apenas o fator psiquiátrico importa, você precisaria de um mínimo de recurso financeiro para conseguir custear um tratamento psicológico ou psiquiátrico. Ou seja, novamente o recurso financeiro irá influenciar no acesso e tratamento.