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Pesquisadora analisa o consumo de álcool

Foto da médica Raquel Boni

19/10/2016

Por: Gustavo Mendelsohn de Carvalho (Agência Fiocruz de Notícias)

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Pesquisadora adjunta em Saúde Pública do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas (INI/Fiocruz) e professora permanente do Programa de Pós-Graduação em Pesquisa Clínica em Doenças Infecciosas, a entrevistada Raquel Bradini de Boni aponta que é preciso diferenciar os diversos padrões de consumo do álcool, o que determina a associação ou não com problemas de saúde e sociais. No entanto, ela lembra que, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), milhões de mortes que ocorrem no mundo anualmente podem ser atribuídas ao uso do álcool.

Médica, com doutorado em psiquiatria pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Raquel participou de diversos projetos de pesquisa relacionados ao consumo de álcool e outras drogas, epidemiologia e consequências do uso de substâncias, e estudos sobre HIV/Aids e populações de difícil acesso. Sua experiência profissional a levou a conclusão de que nem todo o uso de álcool é problemático ou necessariamente leva a dependência. A especialista da Fiocruz participa de mesa-redonda na tarde do primeiro dia (24/10) do Seminário Internacional: Álcool, Saúde e Sociedade, sobre o tema Álcool: Aspectos Epidemiológicos e Políticas sobre Álcool no Brasil e nas Américas

AFN: Qual é o perfil epidemiológico do uso de álcool no Brasil, historicamente, atualmente e comparativamente a outros países?

Raquel de Boni: Primeiramente, é preciso ressaltar que nem todo o uso de álcool é problemático ou dependente. O álcool é uma substância psicoativa lícita (na maior parte dos países - é ilícito em alguns países do Oriente Médio, por exemplo) e seu uso faz parte da história da humanidade. Na verdade, existem evidências de que o uso de álcool começou junto com a agricultura, no Crescente Fértil, aproximadamente no ano 8000 A.C. Desde aquela época, ele já estava relacionado com a socialização e hoje, quando falamos de álcool, sempre surgem opiniões apaixonadas e controversas. Assim, precisamos diferenciar os diversos padrões de uso de álcool, pois são eles que vão estar associados (ou não) a diferentes problemas de saúde e sociais. De modo geral, o uso crônico e pesado de álcool está relacionado a problemas físicos e mentais. Para se ter uma ideia, existem mais de 60 doenças associadas ao uso de álcool, além da dependência e da cirrose - que são as mais conhecidas. Já o consumo episódico pesado, ou binge drinking (uso de 5 ou mais doses de bebida alcoólica em uma única ocasião, sendo que uma dose é igual a uma lata de cerveja ou um cálice de vinho ou uma dose de uma bebida destilada) está mais relacionado a problemas sociais, como acidentes e violência. Existem várias formas de classificação dos padrões de consumo de álcool, no Brasil, o SUS [Sistema Único de Saúde] utiliza a CID -10 [Classificação Internacional de Doenças - Capitulo V, F10].

AFN: Como é o comportamento nas diferentes faixas etárias, classes sociais e regiões?

Raquel de Boni: De toda forma, não se pode esquecer que de acordo com a OMS, em 2012, aproximadamente 3,3 milhões de mortes, ou seja, quase 6% de todas as mortes no mundo eram atribuíveis ao uso de álcool. Dados científicos detalhados sobre o padrão de consumo de álcool são fundamentais para a definição de políticas públicas e planejamento dos serviços de saúde. No Brasil, estes dados ainda são escassos, mas desde os anos 2000, existem iniciativas governamentais para que eles sejam coletados de forma sistemática. As maiores pesquisas sobre o consumo de álcool, entre a população geral, são os Levantamentos domiciliares sobre uso de drogas psicotrópicas no Brasil e os Levantamentos Nacionais de Álcool e Drogas. Os dois primeiros levantamentos foram realizados, em 2001 e 2005, pelo CEBRID [Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas] nas cidades brasileiras com mais 200.000 habitantes e os dois últimos pela Unifesp [Universidade Federal de São Paulo] em 2006 e 2012.

As duas primeiras pesquisas mostraram que a maior parte dos brasileiros, entre 12-65 anos, que vivem nas grandes cidades (69% e 75%, respectivamente) já usou álcool alguma vez na vida; aproximadamente 50% beberam nos últimos 12 meses, e 11% (2001) - 12% (2005) eram dependentes de álcool. Em todas as faixas etárias, a proporção de homens com uso de álcool na vida, nos últimos 12 meses e dependência, é maior do que a proporção de mulheres. As duas últimas pesquisas encontraram resultados semelhantes - em amostras probabilísticas de todo o território nacional e de tamanho menor (3007 e 4607 pessoas) - mas exploraram em maior detalhe os padrões de consumo de álcool. Essas destacaram que aproximadamente 30% dos brasileiros apresentaram consumo binge, sendo este padrão mais frequente entre os homens e os mais jovens. Além disso, não foram encontradas diferenças estatisticamente significativas nas proporções de abstêmios, dependentes e binge drinking entre capitais-regiões metropolitanas e municípios do interior.  O 3° Levantamento Nacional sobre o Uso de Drogas pela População Brasileira, está sendo realizado pela Fiocruz em parceria com a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas [Senad] e coordenação geral do Dr. Francisco Bastos. Pela primeira vez, teremos dados detalhados que representam todo o território nacional, incluindo municípios pequenos e áreas de fronteira. Foram entrevistados aproximadamente 16.300 indivíduos e estamos analisando os padrões de consumo de álcool nas diferentes faixas etárias, níveis de escolaridade e regiões do país.  

AFN: Quais são as medidas restritivas ao consumo de álcool no Brasil, são efetivas, quais são os resultados, por exemplo, da Lei Seca? A limitação de publicidade é suficiente, por que não é como em relação ao tabaco? Como é tratada a questão em relação aos jovens?

Raquel de Boni: O Brasil tem uma política especifica para tratar do álcool, o Decreto nº 6.117 de 2007 (Política Nacional sobre o Álcool) e várias outras políticas que tratam de pontos específicos relacionados a esta substância. A principal referência bibliográfica que compila evidências sobre as políticas que vem funcionando ao redor do mundo é o premiado livro Alcohol: no Ordinary Commodity, cujo organizador principal é o Dr. Thomas Babor, da Universidade de Connecticut. Algumas das principais medidas que comprovadamente reduzem o consumo e os danos associados ao uso são o aumento da taxação, idade mínima para compra de bebidas alcoólicas, regulamentação de locais e horários de venda, regulação do marketing e tratamento de usuários com beber problemático. Em relação ao beber e dirigir, as "blitz" para verificação do uso de álcool; baixos limites de alcoolemia permitidos ao dirigir; limite zero para motoristas jovens; e suspensão da carteira de motorista são algumas das medidas mais bem sucedidas no mundo para redução do número de acidentes e mortes no trânsito.

A grande questão que se apresenta é que, para serem efetivas, as medidas e leis precisam ser fiscalizadas e é preciso esclarecer a sociedade sobre os problemas relacionados ao uso de álcool. Infelizmente, da mesma forma que para o tabaco, a indústria do álcool é uma das mais lucrativas do mundo e gasta quantias enormes em marketing para que o uso seja banalizado e promovido entre faixas cada mais jovens da população. Os avanços que foram feitos nas políticas publicas relacionadas com o tabaco são um exemplo a ser seguido em relação ao álcool. Porém, existem diferenças que tornam essa questão desafiadora, como falei anteriormente, o fato de que, ao contrário do cigarro, nem todos os padrões de consumo de álcool são considerados prejudiciais e o álcool está presente na nossa historia há muito mais tempo.

AFN: Os investimentos em tratamento e prevenção no Brasil são suficientes? Modelos como os AA são eficazes, há alternativas? Existem medicamentos eficazes?

Raquel de Boni: Não, infelizmente a rede de tratamento para o uso de álcool e outras drogas, apesar de ter sido ampliada, ainda não é suficiente. Além disso, dada a alta prevalência de morbidade e mortalidade associada ao uso de álcool, eu me pergunto como é possível que muitos profissionais de saúde ainda não recebam treinamento em seus cursos de graduação para diagnosticar e realizar estratégias mínimas de tratamento (como intervenção breve) para usuários que apresentam uso de risco.  

Existem muitos modelos de tratamento para o uso de álcool, o AA é um modelo difícil de avaliar dentro do paradigma da Medicina Baseada em Evidências. Nesse paradigma, a eficácia é avaliada através de rigorosos ensaios clínicos randomizados - e dada a natureza do AA (onde o anonimato é um pressuposto), a condução desses ensaios fica comprometida. Existem medicamentos para diminuir a fissura (vontade de beber) e medicamentos aversivos (que fazem o indivíduo se sentir mal quando bebe), mas de modo geral os modelos de tratamento são combinados e cada caso deve ser avaliado individualmente - considerando as características do sujeito, a gravidade do uso, a rede de apoio e a disponibilidade dos serviços.  

AFN: Qual a importância do seminário e como pode contribuir nas perspectivas sobre a questão no Brasil?

Raquel de Boni: Considerando que o álcool é um problema de saúde pública, associado a 6% das mortes no mundo e um dos principais fatores de risco para a carga de doença no Brasil, a liderança da Fiocruz nesse debate, que vai contar com a experiência do Dr. Thomas Babor, da Universidade de Connecticut, reconhecido no mundo como um dos principais especialistas na área, é um passo fundamental para avançarmos nessa questão. Acredito que ao longo dos anos, especialmente com a criação do Programa Institucional Álcool, Crack e outras Drogas na Fiocruz e a condução de algumas das maiores e mais importantes pesquisas epidemiológicas sobre o tema, temos a responsabilidade, como maior instituição de pesquisa em saúde publica da América Latina, de pensarmos juntamente com os mais diversos setores da sociedade sobre formas de enfrentar esse grande desafio para a saúde da nossa população.

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