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O dia a dia da Oitava

Foto antiga da 8ª Conferência: delegados de costas com mãos elevadas e mesa principal ao fundo

05/10/2016

Por Marcelo Garcia (Portal Fiocruz)

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Na década de 1980, em pleno processo de redemocratização do Brasil, a 8ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1986, produziu as bases para um novo sistema de saúde nacional, consolidado dois anos depois pela Constituição de 1988. Ary Miranda, chefe de gabinete do então presidente da Fiocruz e também presidente da conferência Sergiou Arouca, fez parte do comitê assessor da Comissão Organizadora e conta como foram os dias de trabalho daquela semana histórica em Brasília. Na primeira parte de sua entrevista para o Portal Fiocruz, ele recordou o processo de mobilização social que tornou a 8ª Conferência possível e explicou como a criação do Sistema Único de Saúde se inseriu no contexto da abertura democrática do país. Nessa segunda parte, ele relembra o processo de construção democrática das resoluções da conferência, avalia a evolução da implementação do SUS nesses 30 anos e demonstra sua preocupação diante das ameaças à saúde e às políticas públicas de forma geral no Brasil de hoje.

E como foi o dia a dia na semana da conferência?

Ary Miranda - Foi muito intenso. Não tínhamos experiência naquilo, era a primeira vez que se realizava uma conferência daquela envergadura. Tinha muita gente mobilizada trabalhando, houve uma prévia preparação, mas novas questões iam se colocando e a gente se reunia, discutia e respondia os desafios. Tinha um clima muito interessante, um comprometimento e uma mobilização para construir algo novo que ajudaram muito. Às vésperas da Conferência ficamos quase duas semanas em Brasília, para a organização e depois para a conferência em si. Era cansativo fisicamente, mas do ponto de vista da construção ideológica e política, estimulava todo mundo. Participar dos grupos de trabalho e das plenárias finais, quando as propostas foram discutidas e votadas, foi significativo, aquilo era algo inédito no processo de construção de políticas públicas no Brasil.

Foi difícil conciliar tantos pontos de vista para a criação de uma proposta coesa?

Nós costumávamos chamar o movimento da reforma sanitária de “partido sanitário”. Isso mostra que entre o grupo que participou da condução desse processo havia diferenças, mas também havia certa unidade na perspectiva da luta pela reforma sanitária. Essa unidade em meio à diversidade e a eventuais divergências políticas foi fundamental. Como em todo processo democrático, houve muita discussão, as questões não eram consensuais. Por exemplo, um grupo defendia que a iniciativa privada deveria ficar fora do arcabouço legal do sistema de saúde, mas prevaleceu na plenária que ela entraria de forma suplementar. É bom lembrar que o setor privado boicotou a Oitava, talvez por não entender a importância daquele passo, o que não impediu que influenciasse as decisões da Constituinte de 1988, fazendo valer seus interesses em diversas pontos. As divergências, no entanto, foram discutidas de forma saudável, não levaram a fraturas, pelo contrário. O processo democrático saiu fortalecido.

Havia a sensação de estar participando de um momento histórico?

É difícil ter essa noção no momento em que a história está passando. A gente não sabia no que aquilo tudo ia resultar, era um processo novo, desafiante. A proposta, é claro, era pensar um sistema com características democráticas, universais, e isso requeria uma nova concepção de Estado, comprometido com as necessidades da população e não com os interesses do capital. Não é pouca coisa, em especial num país com tradição de um Estado privatista e de governos autoritários. Não é a toa que, mesmo depois de constituído, o SUS continua com dificuldade de alcançar a plenitude.

Como você vê a busca pela efetivação do direito à saúde, nesses 30 anos?

Desde sua criação o SUS esteve sob ataque. [Fernando] Collor, por exemplo, vetou uma série de artigos da Lei 8080, a Lei Orgânica da Saúde, de setembro de 1990, relacionados à transferência do Inamps para o Ministério da Saúde, à existência dos conselhos de saúde, à realização de conferências de saúde. Eram vetos substantivos em relação à concepção do SUS universal e participativo. No entanto, a mobilização social conseguiu que esses pontos fossem retomados na lei 8142, em dezembro do mesmo ano. A partir dos anos 1990, por outro lado, os governos de Fernando Collor e Fernando Henrique assumem o neoliberalismo como linha condutora das políticas de governo, atendendo a lógica do nova forma de acumulação de capital que vicejava nos países centrais, o que significou, dentre outros aspectos, uma fragilização nas conquistas que estavam em construção desde a Constituinte de 1988 – o que se reflete, em especial, na dificuldade de financiamento para o SUS. Ou seja, criamos um sistema universal de saúde, mas sem um sistema de financiamento compatível com essa universalidade. Para se ter uma idéia, em outros países capitalistas com sistemas universais de saúde, como França e Inglaterra, pelo menos 75% dos recursos investidos no setor saúde são públicos. Na Inglaterra chega a 85%. No Brasil, não alcança 42 %. Esse é um elemento central para entender as dificuldades de avançar na universalização do SUS e na superação das iniquidades.

O SUS foi criado a partir da mobilização social. A dificuldade de avançar em sua implmentação nesses 30 anos e, em especial, de resistir ao ataque aos direitos sociais que vivemos hoje no país são sinais do enfraquecimento dessa mobilização?

Da nona Conferência Nacional de Saúde em diante, boa parte de suas resoluções vêm sendo constantemente ignoradas pelos governos, em maior ou menor grau. Por outro lado, a desestruturação do mundo do trabalho e de seus movimentos organizados fragilizou a organização da sociedade civil – e isso se reflete na dificuldade de resistir ao golpe recente e de conter a ofensiva privatizante. Já tínhamos dificuldade de implementar o SUS antes, mas quando o próprio ministro da Saúde diz que o SUS não cabe no orçamento e propõe a criação de planos de saúde de baixo custo a situação revela um revés dramático. Afinal, é o ministro que está induzindo a privatização e criando categorias diferenciadas para a população. Mas precisamos continuar a defender o que acreditamos ser uma sociedade mais justa, mais democrática e que contemple fundamentalmente as pessoas excluídas. Só conseguiremos frear o ataque contra as políticas públicas se pudermos sustentar um movimento social vigoroso de enfrentamento.

Para se ter uma idéia, em outros países capitalistas com sistemas universais de saúde, como França e Inglaterra, pelo menos 75% dos recursos investidos no setor saúde são públicos. Na Inglaterra chega a 85%. No Brasil, não alcança 42 % - Ary Miranda

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