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Favelas e periferias do Rio de Janeiro sofrem com a tuberculose

Vista aérea mostrando a Fiocruz e a comunidade de Manguinhos

23/03/2017

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Por: Luiza Gomes (Cooperação Social da Fiocruz)

Mais de um milhão de habitantes da cidade do Rio de Janeiro encontraram em suas 763 favelas um lugar para viver. De acordo com o Censo 2010 do IBGE, o Rio é a cidade brasileira que possui o maior percentual de sua população vivendo em assentamentos informais (22%). Junto a isso, o cartão postal acumula ainda outros recordes: os mais altos índices de mortalidade por tuberculose do Estado e do Brasil. Pesquisadores e gestores identificam na doença invisibilizada um importante marcador para contextos de concentração de renda e iniquidades sociais.

Para a engenheira sanitarista e doutora em Saúde Pública pela Fiocruz Rosely Magalhães há uma relação intrínseca entre a apropriação desigual do espaço urbano e a incidência de tuberculose. Segundo ela, não é a pobreza que facilita a reprodução social da doença, mas a pobreza dos lugares mais ricos que produz as condições desfavoráveis para preservação da vida, como o adensamento populacional, a baixa qualidade das habitações e o acesso insuficiente a serviços essenciais.

 “A tuberculose hoje no Brasil é concentrada nos territórios ricos, que atraem a pobreza para suas periferias. São pessoas que migram atrás de emprego e melhores condições de vida nos municípios que concentram riqueza”, explica.

“Na própria história do Rio de Janeiro você tem que os escravos e, posteriormente, os migrantes, vêm ocupando os espaços de baixo interesse econômico da cidade por conta da força exercida pelos interesses imobiliários nas áreas centrais. Em geral, são essas pessoas que são empurradas para as encostas, várzeas, mangues e áreas de risco ambiental onde o saneamento é inadequado, falta água, e as condições de moradia, alimentação, transporte são precários”, explicou. 

No ano passado, a tuberculose levou à morte 182 moradores do município do Rio, segundo informações da Gerência de Pneumologia Sanitária da Secretaria Estadual de Saúde do Rio de Janeiro. O quantitativo corresponde a quase metade (47%) dos óbitos pela doença em todo o Estado e a taxa de mortalidade é a mais alta do país, seguida da de Recife. Os mais afetados são os homens negros.

Segundo Jorge Eduardo Pio, gerente da Área Técnica de Doenças Pulmonares Prevalentes da

Secretaria Municipal de Saúde, os dados refletem a expressiva concentração demográfica da cidade e ilustra um quadro de exclusão social.

 “Apesar da pequena extensão territorial, o Rio possui uma densidade populacional muito alta,

onde residem praticamente metade dos habitantes de todo o Estado. Aqui e no mundo inteiro é uma ‘epidemia localizada’ em lugares com baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), apesar de ocorrerem com menor incidência em outras regiões”, ressaltou.

Tuberculose em Manguinhos

Contrariando a tendência nacional de queda do número de casos, o Complexo de Manguinhos convive ainda com índices alarmantes da doença: em 2015, a taxa de incidência era de 268 para 100 mil habitantes – mais de oito vezes a taxa nacional, estimada em 30,9/100 mil habitantes no mesmo período. Para que o agravo deixe de ser um problema de Saúde Pública, a Organização Mundial de Saúde (OMS) estipulou como meta a redução do coeficiente de incidência para menos de 10 casos por 100 mil habitantes até 2035.

“As estratégias do Tratamento Diretamente Observado (DOT), a mobilização social e a educação popular em saúde são importantes ferramentas no controle da doença. No entanto, o paciente vai ao posto, toma a medicação e retorna para um ambiente densamente povoado onde as condições de propagação do bacilo se reproduzem indefinidamente”, observou Rosely Magalhães.

A proximidade entre os imóveis, a pouca ventilação e a umidade figuram entre os desafios ambientais permanentes configurados nas periferias urbanas do Rio e, em especial, em Manguinhos – que recebeu esse nome por estar situado em uma zona de mangue. “Enquanto tivermos famílias de dez pessoas morando em casas de 10 metros quadrados, que não estejam atentas aos sintomas da doença, ou, por algum motivo não procurarem o sistema de saúde, não teremos como falar em erradicação da tuberculose nas comunidades”, afirmou Jorge Pio.

Em atenção ao alto número de casos e à elevada taxa de abandono em Manguinhos, o Centro de Saúde Escola Germano Sinval Farias (CSEGSF), da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz), responsável pela atenção básica no bairro, criou em 2014 um grupo de trabalho para aprimorar o processo de detecção e tratamento dos casos na região.

 “Tínhamos uma taxa de abandono de 40% na época. Até 2010, somente duas equipes da Estratégia Saúde da Família não davam conta das 15 comunidades de Manguinhos. Depois desse ano, houve um reforço da estratégia, que passou a contar com 14 equipes e que pôde fazer a cobertura total da área, e esse coeficiente caiu para 10%”, narrou Celina Boga, médica do Centro de Saúde.

Jorge Pio explica que até 2009 todos os casos do município eram atendidos apenas por unidades especializadas. Com o aumento da cobertura da estratégia e a capacitação dos médicos e Agentes Comunitários de Saúde para a doença, houve também um aumento no número de notificações.

“Em 2008, apenas 3,5% da população era atendida pela estratégia Saúde da Família. Hoje, alcançamos a marca dos 70%. Reduzimos as taxas de abandono para 10% com o acompanhamento presencial do tratamento dos pacientes, o que reduz também a possibilidade de casos tuberculose multirresistente (quando o bacilo se torna resistente à medicação)”, informou.

Vulnerabilidade social

Além da reprodução das condições sociais que propiciam a multiplicação de casos nas favelas, os conflitos armados constituem importante dificultador para a plena reabilitação dos doentes e controle da tuberculose, segundo o gerente Área Técnica de Doenças Pulmonares Prevalentes da Secretaria Municipal.

“Se o paciente é acamado e recebe a medicação em casa, nos dias de tiroteio ele não vai receber porque o Agente Comunitário fica impossibilitado de transitar na área. Em alguns casos, a unidade de saúde se vê obrigada a fechar as portas durante a ocorrência”, apontou Jorge Pio, lembrando que a interrupção do tratamento é uma das causas da criação de bacilos  multirresistentes à medicação.

Para lidar com o problema, a Secretaria Municipal de Saúde dispõe de um Manual de Acesso Seguro que ajuda ao profissional de saúde a identificar sinais de alerta nas comunidades onde trabalha. “São questões que o setor saúde por si não consegue dar conta, que fogem das nossas mãos, mas que interferem no nosso trabalho e determinam na eficácia do controle da tuberculose”, explicou Patrícia Durovni, coordenadora de Doenças Crônicas Transmissíveis da Secretaria Municipal de Saúde.

Políticas intersetoriais

Por meio de seus porta-vozes, a Secretaria Municipal de Saúde aponta como estratégicos o contínuo aprimoramento das equipes de atenção básica, a melhora do entrosamento entre a atenção primária e secundária de saúde, e a promoção de espaços de compartilhamento de experiências entre gestores e profissionais do setor a respeito da doença. Além disso, reconhece os limites impostos à atuação da saúde para controle de um agravo delimitado por flagrantes contradições sociais.

Nesse mesmo sentido, conclui o estudo Tuberculose como marcador de iniquidades em um contexto de transformação socioespacial (disponível em inglês), publicado em fevereiro deste ano na Revista de Saúde Pública, da Universidade de São Paulo (USP): “É premente a articulação dos serviços de saúde com outros setores públicos municipais voltados para habitação, infraestrutura, assistência social e educação, visando à redução da carga social da tuberculose para que a resolutividade do problema não se restrinja unicamente à capacidade de resposta dos programas locais de controle da doença”.

O estudo investigou a distribuição espacial da tuberculose em 79 bairros do município de Itaboraí, de 2006 a 2011, e foi realizado por pesquisadores do Departamento de Endemias Samuel Pessoa, da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz) e pelo Instituto de Estudos em Saúde Coletiva, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Em 2016, a Fiocruz participou pela primeira vez da coordenação e dos debates do II Seminário Nacional sobre Urbanização de Favelas (II Urb Favelas), acrescentando a dimensão dos determinantes sociais da saúde e suas implicações para o tema discutido.

No encerramento do evento, o então vice-presidente de Ambiente, Atenção e Promoção da Saúde (VPAAPS) Valcler Rangel, destacou a relação indissolúvel entre saúde pública e espaço urbano. “Consideramos a Saúde Pública como um campo de enfrentamento da fragmentação de políticas para que a gente seja possível trabalhar o espaço público de modo mais adequado. A ideia de trabalhar com desequilíbrios ambientais, ocupação desordenada, densa urbanização, a discussão das violências, da acessibilidade têm que fazer parte da agenda da saúde”, defendeu Valcler para o auditório com mais de 200 participantes, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), em novembro de 2016.

 

 

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