30/11/2015
Por: Claudio Oliveira (Portal Fiocruz)
Pouco mais de três décadas após o primeiro caso de Aids diagnosticado no Brasil, em 1982, o estigma relacionado a doença segue alimentando preconceitos que prejudicam o desenvolvimento de estratégias de prevenção e o acesso ao diagnóstico e ao tratamento. Apesar da evolução científica e do fato da Aids não mais significar uma sentença de morte do ponto de vista clínico, a “morte civil” da pessoa que vive com HIV/Aids, exposta por Herbert de Souza (Betinho) e Herbert Daniel ainda no início da epidemia, segue presente na vida de muitos portadores do vírus da Aids.
De acordo com Simone Monteiro, pesquisadora do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), os casos de discriminação e violência decorrentes da revelação do diagnóstico pelo HIV, principalmente entre populações mais vulneráveis, somadas as propostas de criminalização de transmissão do HIV/Aids, levam a pessoa vivendo com HIV/Aids a ocultar a doença.
Em casos extremos, quando a dificuldade de gerenciar o segredo é grande, algumas pessoas optam por não se tratar. Segundo Veriano Terto, coordenador de projetos da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (ABIA), de alguma forma todas as pessoas vivendo com HIV/Aids administram seu segredo. “No primeiro momento, não dá para falar para ninguém. O sigilo é mantido devido a questões culturais, sociais, legais ou políticas. Por exemplo, uma religião pode discriminar uma mulher HIV+ por achar que ela é promíscua. Se ela aderir ao tratamento, irá se expor”.
A dificuldade de adesão ao tratamento é uma realidade sentida também pelos profissionais de saúde. Para Sandra Wagner, pesquisadora do Laboratório de Pesquisa Clínica em DST e Aids do Instituto Nacional de Infectologia (INI/Fiocruz), os motivos que levam uma pessoa a não se tratar são variáveis e o profissional de saúde deve procurar ter uma boa interação com a pessoa que está sendo tratada. “A aceitação tem que ser discutida. Se ela não quiser, não vai morrer. Desistir é um direito da pessoa, mas digo sempre que nós, profissionais de saúde, não podemos desistir. Se ele faltar, temos que ir atrás dele. O profissional de saúde sofre muito com a desistência, mas tem que estar disposto a tentar novamente”.
Enquanto o estigma classifica o portador do vírus da Aids na sociedade, o HIV segue à margem dessa discussão. Sem discriminar pessoas por idade, sexo, religião, comportamento ou orientação sexual, o HIV atinge até mesmo quem ainda não nasceu. De acordo com Maria Letícia Cruz, médica pediatra do Hospital dos Servidores do Estado, muitas crianças e adolescentes que nasceram com HIV/Aids deixam de se tratar por causa do estigma. “Eventualmente, se houver pessoas próximas da criança ou adolescente, o remédio pode não ser dado. Isso acontece por causa do estigma, culpa e medo de que a criança revele sua condição para outros. A pessoa sente medo de ser julgada”.
Maria Letícia sugere que os familiares sejam informados desde o acompanhamento sobre a importância de saber o momento certo para contar. “A criança em algum momento irá questionar o porquê de tantos remédios. Quando a família não aceita o diagnóstico, esses questionamentos naturais não são respondidos e são usadas desculpas para camuflar a existência da Aids”. Para se informar e conhecer outras experiências, a pediatra indica o manual elaborado pelo Ministério da Saúde, que tenta fazer um trabalho lúdico voltado para crianças. “Eventualmente usamos o manual, mas é importante que a pessoa que esteja acompanhando a criança se mostre aberta para perguntas. O mais importante é que o profissional consiga perceber que há no familiar a vontade de falar sobre o diagnóstico para a criança”.
Sobre a revelação do diagnóstico, Veriano Terto acrescenta que o profissional de saúde tem de estar consciente de que não está dando apenas um diagnóstico clínico. “A pessoa sai de lá com a condição de infectado. Além disso, o diagnóstico classifica pessoas dentre categorias sexuais, se é mais ou menos vilão, mais ou menos vítima, se é um jovem promíscuo, mulher prostituta...não tem como não ser enquadrado no senso comum e o profissional deve estar ciente disso”.
Não há “fórmula de bolo”
Centro de Referência em HIV/Aids, o INI/Fiocruz trabalha a Profilaxia Pós-Exposição, forma de prevenção que administra os medicamentos que fazem parte do coquetel utilizado no tratamento da Aids para impedir a infecção pelo HIV. Porém, antes da realização do exame, a pessoa recebe um aconselhamento pré-teste, onde são repassadas informações para que a pessoa possa enfrentar a notícia, explica Sandra Wagner. “No pré-teste ficamos sabendo porque a pessoa veio fazer o teste, isso facilita o trabalho dos aconselhadores, mas não é tudo. Apesar de termos uma rotina, o dia a dia não nos permite uma ‘fórmula de bolo’. O mais importante é a interação entre duas pessoas, é não julgar o outro. A pessoa que resolve fazer um teste já chega tensa, não pode chegar aqui achando que será julgado(a)”.
Para que haja adesão das obrigações que a pessoa terá que fazer, como a realização periódica de exames, uso contínuo de remédios, redução do consumo de álcool, além de todas as obrigações éticas e legais, Veriano pede que o profissional busque se colocar no lugar do outro. “Por exemplo, em um processo de imigração, a pessoa tem que dizer sua condição. São essas coisas que o profissional deveria incorporar”.
Prevenção compartilhada
Um ponto polêmico em respeito ao direito do sigilo é levantado quando a pessoa se descobre soropositiva e vive uma relação estável ou utiliza drogas injetáveis junto a outras pessoas. Sandra Wagner explica que no INI a recomendação é solicitar a pessoa em tratamento que comunique ao seu parceiro(a). “Sabemos que a decisão é complicada, mas deve ser discutida. Até onde pode ir o sigilo? Até onde pode ir a obrigação de revelar um diagnóstico? ”, indaga.
A médica destaca a dificuldade que existe em inserir o uso do preservativo quando se vive um relacionamento estável, problema que atinge também pessoas com outras doenças sexualmente transmissíveis (DSTs). “A pessoa deve entender que da mesma forma que ele(a) tem direito ao sigilo, seu parceiro(a) também tem o direito de se testar e se tratar se for necessário. Não tratar a sífilis, por exemplo, pode trazer consequências graves. Temos que chegar em um consenso, mas percebo que aqui a maioria traz o parceiro para o teste”.
Terto afirma que o direito ao sigilo não torna a pessoa mais ou menos perigosa, lembrando que a pessoa pode manter o sigilo e ser altamente responsável. “A pessoa vivendo com HIV/Aids não pode ser considerada a única responsável pela prevenção. Essa responsabilidade deve ser compartilhada entre todos”.
Solidariedade
Para reduzir o impacto do estigma e da discriminação na vida de muitas pessoas soropositivas, Simone Monteiro sugere o desenvolvimento de políticas sociais e ações comunitárias envolvendo diferentes atores sociais, voltadas para mudanças culturais e estruturais capazes de combater os fatores que alimentam o estigma, como as desigualdades sociais e de gênero, homofobia e preconceitos contra prostitutas e usuários de drogas. “Historicamente, o enfrentamento da Aids envolveu respostas sociais voltadas para a publicização da soropositividade, ilustrada na campanha ‘Silêncio=Morte’, lançada em 1990. Embora o sigilo seja assegurado por lei, considero importante ressaltar que a não revelação do HIV compromete o combate ao estigma e colabora para sua atualização”.
O coordenador de projetos da Abia lamenta que o estigma e discriminação que cercam as pessoas vivendo com HIV/Aids desde o início da epidemia no Brasil ainda se façam presentes. “O estigma se mantém, apenas a manifestação que as vezes muda. O estigma de ser uma pessoa potencialmente perigosa para os demais continua como antes. A solução é lembrar as mensagens passadas por Betinho e Herbert Daniel. Temos que reforçar a solidariedade porque esse é o caminho”.
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