14/03/2018
Por: Vinicius Ferreira (IOC/Fiocruz)*
Após uma bateria de análises que envolveu mais de 20 mil ovos de quatro espécies de mosquitos, incluindo o Aedes aegypti, pesquisadores identificaram que o grau de presença de melanina, relacionada à pigmentação escura, na casca do ovo influencia diretamente sua resistência à dessecação: quanto mais escuro, mais o ovo conseguirá sobreviver em ambientes secos. Como o ciclo de vida dos mosquitos depende de uma fase aquática – é em ambientes com água que os ovos são depositados – entender a resistência do ovo à dessecação significa responder questões sobre a própria sobrevivência das espécies em ambientes hostis e sua manutenção na natureza mesmo após períodos de seca prolongada. Conduzida por especialistas do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) e da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF), em Campos dos Goytacazes, no estado do Rio de Janeiro, em colaboração com a Universidade da Flórida, a pesquisa foi publicada na revista internacional ‘Plos Neglected Tropical Diseases’.
Inicialmente, foram comparados ovos das espécies Aedes aegypti (transmissor de zika, dengue e chikungunya), Anopheles aquasalis (malária) e Culex quinquefasciatus (filariose linfática e vírus do Oeste do Nilo). Estudos anteriores já haviam demonstrado que os ovos do gênero Aedes apresentam um traço peculiar: são capazes de resistir de oito a 15 meses sem nenhum contato com a água. Ou seja, os ovos permanecem viáveis para eclodir e dar origem a mosquitos adultos mesmo um ano mais tarde. A pesquisa atual preenche uma lacuna na literatura científica apontando a melanina da casca de ovos de insetos, especialmente do Aedes, como uma das razões que explica essa elevada resistência ao ressecamento.
Primeira autora do artigo, a bióloga, especialista em Entomologia Médica, Luana Farnesi, que atualmente desenvolve o pós-doutorado no Laboratório de Biologia Molecular de Insetos do IOC e realizou o estudo ao longo do curso de doutorado no Programa de Pós-graduação em Biologia Celular e Molecular do Instituto, explica que o resultado pode lançar luz ao desenvolvimento de novas estratégias de controle do mosquito. Afinal, hoje não existem produtos disponíveis para impedir o desenvolvimento do vetor ainda na fase de ovo – e as alternativas de inseticidas para controle de larvas e de mosquitos adultos esbarram no desafio crescente da resistência por conta do uso indiscriminado. “Ao gerar novos conhecimentos sobre o papel da melanina para a resistência dos ovos, avançamos no conhecimento básico desta fase do ciclo biológico do mosquito que, comparativamente com as outras fases, ainda é pouco estudada. Avanços no conhecimento dos ovos podem abrir um possível caminho para o controle”, salientou.
Luana Farnesi analisando alguns dos mais de 20 mil ovos de mosquitos (Foto: Josué Damacena)
Ao mesmo tempo, a descoberta reforça o papel fundamental da prevenção, a partir da ação semanal em nossas casas, com a remoção manual de potenciais criadouros onde esses ovos podem ser depositados. A evidência trazida pelo estudo em relação ao alto grau de resistência à dessecação dos ovos, que permite que eles sejam transportados a grandes distâncias em recipientes secos, sem serem percebidos justamente por serem escuros, demonstra a necessidade do combate continuado aos criadouros, em todas as estações do ano. “Este achado reforça a orientação sobre a necessidade de não apenas jogarmos fora a água encontrada em um recipiente, mas de esfregarmos a parede do local com a parte verde da esponja. Isso irá esmagar os ovos, inviabilizando que chegue à fase de mosquito adulto, capaz de transmitir doenças a partir da picada”, alerta a pesquisadora Denise Valle, do Laboratório de Biologia Molecular de Flavivírus do IOC, que juntamente com o biomédico Gustavo Rezende, da UENF, orientou Luana. “É mais fácil controlar o Aedes em suas fases aquáticas - de ovo, larva e pupa –, pois está confinado em um local, do que na fase adulta, quando pode voar e se esconder”, completa. A bióloga Helena Martins Vargas, da UENF, também assina o artigo.
Em busca de evidências
Para alcançar os resultados, foi preciso percorrer um longo caminho de experimentos no laboratório. Primeiro, uma comparação entre os ovos das espécies Aedes aegypti, Culex quinquefasciatus e Anopheles aquasalis evidenciou diferenças significativas na fase da embriogênese, quando o ovo, colocado pela fêmea, ainda está concluindo sua formação. O experimento consistiu em retirá-los do contato com a água em diferentes momentos do desenvolvimento embrionário e colocá-los em um ambiente seco. Os ovos de Aedes levaram a melhor: foram muito mais resistentes que os de Culex e os de Anopheles.
Em detalhe, ovos do mosquito Aedes aegypti (Foto: Josué Damacena)
Como no momento de mudança de ambiente todos os ovos já haviam produzido sua cutícula serosa, uma espécie de película protetora que está envolvida na retenção da água dentro do ovo, os especialistas precisavam, ainda, descobrir o fator adicional que configurava ao Aedes essa característica avançada. Neste momento, foi levantada a possibilidade de que a cor do ovo influenciaria em sua sobrevida fora d’água. Comparados aos ovos do Aedes que eram os mais escuros, os ovos de Anopheles e Culex apresentavam 80% e 40% de taxa de melanização, respectivamente.
Foi então que entrou no experimento uma nova espécie, o Anopheles quadrimaculatus. Para testar a hipótese de que a cor interfere na resistência ao ressecamento, foram analisadas uma linhagem selvagem do mosquito, que deposita ovos de coloração escura, e uma linhagem geneticamente modificada, que também tem a cutícula serosa, mas que produz ovos de coloração clara. Os testes realizados com as três espécies inicialmente contempladas no estudo – Aedes aegypti, Anopheles aquasalis e Culex quinquefasciatus – foram repetidos com as duas linhagens do Anopheles quadrimaculatus na Universidade da Flórida, onde Luana cursou parte do doutorado. O resultado não deixou dúvidas: a resistência do ovo à dessecação nos mosquitos é fortemente dependente da formação da cutícula serosa, ao mesmo tempo em que a melanização da casca do ovo afeta positivamente sua sobrevivência fora da água.
“A introdução dessas duas linhagens na pesquisa foi fundamental para respondermos à pergunta biológica sobre a importância da melanização como indicador da resistência dos ovos à perda de água. Vimos que a casca de ovos da espécie geneticamente modificada, que possuía coloração mais clara, perdia água mais rapidamente do que a casca de ovo da linhagem selvagem, de cor escura. De todos os testes que realizamos, essa foi a única diferença biológica entra elas, evidenciando o importante papel da melanina para a manutenção da espécie”, explicou Luana, que, desde 2003, desenvolve estudos sobre os mecanismos ligados à impermeabilidade de ovos do Ae. aegypti.
De olho no controle do Aedes
O estudo gera novas pistas sobre uma das numerosas características evolutivas que conferem ao Aedes uma elevada taxa de sobrevivência. Silencioso e de medida milimétrica, ele é capaz de picar uma pessoa e passar despercebido. A saliva das fêmeas, que se alimentam de sangue como parte do processo de maturação dos ovos, possui substâncias anestésicas e anticoagulantes que a possibilitam sugar até duas vezes seu peso em sangue sem ser incomodada. Com essa alimentação, ela é capaz de dar à luz uma geração com cerca de 1500 novos mosquitos, ao longo de seus pouco mais de 30 dias de vida. Essa família extensa é derivada de uma estratégia, digamos, interessante: os ovos, de cor escura, são distribuídos por diversos criadouros, muitos também de cores escuras, como vasos de plantas e pneus; de difícil acesso, como calhas, caixas d’água e bandejas de ar-condicionado; ou não convencionais, como vasilhas de água de animais.
Para mais informações, conheça a iniciativa 10 Minutos Contra o Aedes e acompanhe o conjunto de videoaulas Aedes aegypti: introdução aos aspectos científicos do vetor.
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