23/02/2018
Renata Curl Hauegen (CDTS/Fiocruz)
A revista Science publicou, nesta sexta-feira (23/2), artigo que descreve o Projeto Viroma Global (PVG), iniciativa internacional que propõe uma estratégia absolutamente diversa da que tem sido adotada ao combate dos riscos virais. O objetivo do PVG é identificar e caracterizar os vírus com potencial de risco, gerando conhecimento que possibilite prever as próximas epidemias e mitigar seus danos. O projeto se baseia na estimativa de que há aproximadamente 1,6 milhão de vírus desconhecidos no mundo, entre eles, de 600 a 800 mil deles podem infectar o homem. Os cientistas do PVG querem saber quem são eles e qual caminho podem seguir. Para isso, pretendem caracterizar os patógenos emergentes, identificar práticas e comportamentos que levam a propagação e ampliação da doença e propor conjunto de medidas para caso de emergências.
A proposta, embora audaciosa, está sustentada em evidências robustas coletadas pelo Predict – um projeto piloto, conduzido pela Agência dos Estados Unidos para Desenvolvimento Internacional (USAIDS) com foco no fortalecimento de competências e estruturas laboratoriais para detectar e prever pandemias a partir de vírus que são transmitidos da relação entre animais e humanos. Para alcançar seu objetivo, o PVG pretende ampliar e fortalecer laboratórios de virologia existentes e criar uma base de dados de larga escala em ecologia e genética de vírus de alto risco propondo transformar a ciência básica em virologia em uma área de conhecimento baseada em big data.
O Predict, em oito anos, com U$ 170 milhões e mais de 30 países parceiros, conseguiu coletar aproximadamente 250 mil amostras de mais de 90 mil origens e identificou aproximadamente mil novos vírus. Capacitou mais de 4 mil profissionais e tem 50 laboratórios em plena atividade. Os números demonstram o acerto na abordagem OneHealth, que considera a intrínseca relação entre a população, animais e o meio ambiente para o mapeamento de vírus que representam perigo para a saúde.
De fato, 75% dos patógenos emergentes é transmitido por animais. De acordo com o artigo publicado na Science, o PVG estima que a maioria da diversidade viral de nossos reservatórios zoonóticos podem ser descobertos, caracterizados e avaliados em um prazo de dez anos. De acordo com o artigo, a iniciativa dependerá da adoção de tecnologias de ponta para sequenciamento além da colaboração entre virologistas, epidemiologistas e modeladores, novas estratégias para avaliar as relações entre vírus e hospedeiros, e conhecimento nas áreas de biologia evolutiva, modelagem de biodiversidade, veterinária, entre outras.
O Brasil faz parte dessa iniciativa. O coordenador do Centro de Desenvolvimento de Tecnologias em Saúde (CDTS/Fiocruz), Carlos Morel, é co-autor do artigo da Science e participa da governança do projeto ao lado do diretor da Unidade de Desenvolvimento e Segurança da Saúde Global da Agência Americana para Ajuda Internacional, Dennis Carroll. O Brasil é um hotspot para pesquisas e coleta de amostras dada a alta probabilidade de extrapolação dos vírus de seus reservatórios para o ser humano. Além disso, o país tem cientistas com importantes contribuições para a compreensão e prevenção de doenças emergentes virais, como o especialista em virologia do CDTS Thiago Moreno, que a partir do sequenciamento e análise do comportamento do vírus da zika identificou a trajetória da epidemia e testa medicamentos já aprovados para tratar a doença e evitar que a transmissão do vírus para o feto. O Brasil tem biodiversidade, liderança, ciência e experiência em alianças internacionais.
Os organizadores do PVG estão estabelecendo um desenho de gestão transparente e com participação equitativa de cada país envolvido. Questões éticas, sociais, legais pautam as atividades científicas. Na prática, isso representa um esforço para construir protocolos de acesso a biodiversidade e patrimônio genético em conformidade com Protocolo de Nagoya e as regras dos países envolvidos, acordos para o compartilhamento de amostras, dados e potenciais benefícios na hipótese de desenvolvimento e comercialização de produtos e serviços, além de políticas de proteção da propriedade intelectual e compliance que estabelecem, de antemão, os valores e princípios que os parceiros devem observar, garantindo a proteção das populações e o meio ambiente e a primazia do interesse público e o bem comum. A estratégia de vigilância orientada e baseada no risco, voltada para a detecção de vírus no seu ambiente natural pode conduzir a intervenções eficientes antes do contágio de pessoas ou animais alimentares.
O custo da empreitada foi avaliado em US$ 1,2 bilhão, para aumentar a capacidade de identificação de patógenos, fortalecer capacidades e laboratórios existentes, colher dados e gerar conhecimento. Entre os benefícios, mais conhecimento pode oferecer respostas mais eficientes e rápidas aos surtos, nortear o desenvolvimento e aprimoramento de diagnósticos, medicamentos e vacinas. Entendendo como o vírus se comporta, é possível, inclusive, evitar que se espalhe e criar consciência global e regional e informar políticas para evitar ou mitigar a disseminação dos vírus.
Para fins de comparação, um recente estudo na área da economia da saúde avaliou que o Brasil gastou R$ 2,3 bilhões com dengue, chikungunya e zika, apenas em 2016. Considerado conservador pelos próprios autores, o estudo calculou custos diretos, como atendimento e medicamentos e ausência no trabalho, e indiretos, como o combate ao mosquito vetor, mas excluiu, por exemplo, despesas com tratamento da microcefalia e anos de vida perdidos. Pode-se dizer que o Brasil pagou o preço alto pela inação.
O Boletim Epidemiológico 3/2018 do Ministério da Saúde divulgou que mais de 3 mil crianças nasceram com malformação em virtude do vírus zika entre os anos de 2015 e 2017. Por malformação compreende-se microcefalia, comprometimento do sistema nervoso central, epilepsia, deficiências auditivas e visuais, dificuldade de desenvolvimento psicomotor, além de prejuízos nos ossos e articulações. Entre mais de 15 mil notificações de suspeitas de zika, 507 crianças morreram, desconsiderando abortos e natimortos.
Esse número ganha corpo com a história de Henrique, de 2 anos. Diagnosticado com microcefalia causada pela zika, tem dificuldades de se manter de pé, sentar ou sustentar a cabeça. Pouco fala e mal enxerga. As atividades de fisioterapia, fonoaudiologia, estimulação visual e terapia ocupacional que o menino faz desde o nascimento não têm promovido melhoras expressivas e a mãe de Henrique, apesar da esperança, pouco sabe sobre seu futuro.
Cientistas vêm descobrindo e descrevendo os efeitos das epidemias virais na medida em que seus danos ocorrem. Do mesmo modo que autoridades administrativas na área da saúde tomam decisões no auge dessas emergências. A fragilidade das ações em saúde pública que reagem a propagação de vírus novos e reemergentes não é exclusividade do Brasil. Agora mesmo, assistimos os EUA definindo como lidar com o H3N2, um tipo de influenza A, no meio da crise.
Há muito ainda para ser desenvolvido em termos de tecnologias para diagnósticos e tratamentos. Medicamentos e vacinas levam de 10 a 20 para seu desenvolvimento completo. É um processo longo, complexo, custoso e de alto risco. Por outro lado, aproximadamente três novas doenças virais surgem a cada ano. De acordo com o Ministério da Saúde, em apenas dois anos o número de mortos pelo chikungunya subiu de 14 (2015) para 173 pessoas (2017).
As tecnologias disponíveis não dão conta dos efeitos causados pelas doenças virais emergentes, seja porque pensadas para um grupo limitado de pacientes ou por falta de capacidade de produção e distribuição que garanta o acesso imediato de alto volume de tratamento ou vacinas. O vírus H1N1, por exemplo, foi detectado em 2009 e infectou quase 2 bilhões de pessoas em 73 países. Nesse mesmo prazo, como resposta sanitária, apenas 17% da população global foi imunizada.
Pensar em política públicas de saúde e desenvolver medidas de reparação após a dispersão do vírus expõe a população a danos trágicos, como os de Henrique. Estudos recentes estimam que o mundo conhece apenas 1% dos vírus que podem causar doenças. Mudanças demográficas e ambientais, além do mercado global e trânsito internacional de pessoas, contribuem para o aumento e propagação de vírus novos e reemergentes, como HIV, ebola, Mers, síndrome respiratória aguda grave (SARS), dengue, chikungunya, zika etc.
Detecção precoce é elemento imprescindível para combater as doenças virais emergentes. Nossa capacidade de lidar com as próximas epidemias está limitada pelo desconhecimento sobre essas ameaças. O PVG pretende abastecer a comunidade global com informações necessárias para detectar, prevenir e agir de maneira proativa às epidemias emergentes, mitigando o risco de futuras epidemias reduzindo o impacto das doenças como a zika, que afetou Henrique e sua família. Se o objetivo for alcançado, o preço é insignificante.