23/01/2024
Liseane Morosini (Revista Radis)
Nem toda gravidez é a mesma, como bem sabe Jecita Pereira Clares, que não teve intercorrências no nascimento do primeiro filho e, no segundo, enfrentou um parto prematuro. Com 25 semanas, Benjamin nasceu com 750 gramas e Jecita viveu a montanha-russa emocional comum a mães com filhos internados em unidades de terapia intensiva.
Quando Radis conversou com ela na sala do Banco de Leite do Hospital Regional de Taguatinga (HRT), no Distrito Federal, ela trazia Benjamin ao peito, em posição canguru. O contato pele a pele junto à mãe traz inúmeros benefícios para ambos — entre eles, o estímulo à amamentação. “É outra experiência. Eu nem conhecia esse mundo do prematuro: conheci vivendo”, disse, sorrindo.
Benjamin foi alimentado por sonda com o leite fornecido pelo Banco de Leite Humano (BHL) do Hospital de Taguatinga, já que Jecita ainda não estava produzindo leite. Nesse processo chamado de translactação, em que uma sonda próxima ao mamilo conduz o leite humano, a mãe fazia movimentos gentis na boquinha do bebê para estimular a pega no mamilo. De 1 ml de leite materno que Benjamin recebeu ao nascer, ele estava consumindo 35 ml por dia após 73 dias de internação.
Tudo teria sido mais difícil, assume Jecita, sem o apoio da equipe multiprofissional. “Para mim é como se elas fossem o meu corpo, elas dão o que eu não posso dar. Se não fosse esse trabalho do BHL, meu filho não estaria vivo”, reconheceu.
Na maternidade, Jecita conheceu o trabalho dos profissionais de saúde ligados à Rede Brasileira de Bancos de Leite Humano (rBLH), uma ação estratégica do Ministério da Saúde reconhecida em todo o mundo por contribuir para a redução dos indicadores de mortalidade e morbidade neonatal e na diminuição da incidência de doenças crônicas não transmissíveis. Ao todo, a rede tem 227 bancos de leite humano (BLH) que atuam muito além da coleta, do processamento e da distribuição de leite a bebês prematuros e de baixo peso. São casas de apoio à amamentação que têm muita história para contar em seus 40 anos a serem completados em 2024.
Rede pioneira
O primeiro BLH surgiu em um contexto de desmame precoce e incentivo ao uso de fórmulas artificiais, que eram tidas como superiores ao leite materno. Criado em 1943, o BLH do atual Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira (IFF), da Fiocruz, até 1984 atendia apenas casos especiais. Foi quando começou a ser implementado um novo paradigma operacional que permitiu a expansão dos bancos de leite no país e consolidou a primeira rede no SUS — e fez do Distrito Federal o único lugar no mundo a conquistar autossuficiência em leite materno e o único no país a ter uma legislação que regula essa política.
João Aprígio Guerra de Almeida foi a força motriz de todo o processo que culminou no estabelecimento desse novo paradigma para os Bancos de Leite Humano. Engenheiro de alimentos, Aprígio contou à Radis que, na década de 80, a mortalidade infantil no país era elevada e o aleitamento materno já era reconhecido como uma ação eficaz para atenuar e reduzir o problema, o que foi decisivo para fortalecer a expansão do modelo brasileiro de BLHs.
O IFF/Fiocruz foi a semente da rBLH. Até a década de 80, havia apenas cinco unidades. Aprígio revela que, nesta época, surgiu a percepção de que o banco de leite não poderia ser uma leiteria humana. “E a mulher? Onde ela ficava nesse processo? Poder trazer a mulher para o centro da cena do banco de leite humano, percebê-la com uma perspectiva mais compreensiva, foi outro grande diferencial”, observou, ao comentar que a mudança de paradigma fez da mulher a protagonista da amamentação e o bebê o beneficiário do alimento.
De acordo com Aprígio, o modelo brasileiro se alicerça no forte referencial do aleitamento materno e da tecnologia de alimentos, que amplia a segurança do que se faz dentro do banco e a oportunidade de uso de suas funcionalidades como recurso terapêutico. “Não é só transferir o modelo, mas transferir princípios em uma mesma base de rigor técnico e apoiar cada local respeitando as suas peculiaridades”, disse à Radis. Hoje é coordenador do Programa Iberoamericano de BLH e da Rede Global de Bancos de Leite Humano. Em 2020, Aprígio recebeu o Prêmio Dr. Lee Jong Wook, concedido anualmente pela Organização Mundial da Saúde (OMS) a indivíduos ou instituições que contribuíram com importantes avanços para a saúde pública.
O Grupo Técnico de BLHs formalizou, em 1984, o início do processo de institucionalização de experiências até então isoladas; e, em 1987, surgiu o primeiro convênio para que o BLH do IFF/Fiocruz se tornasse o Centro de Referência Nacional. Os bancos passaram a ser levados para o resto do Brasil.
A cooperação social foi ampliada para outros países. Aos poucos, a rede local se tornou uma rede global. Depois dos municípios brasileiros, atravessou fronteiras e hoje está presente em países da América Latina, do Caribe, da Península Ibérica, da África e do Brics, grupo composto por Rússia, Índia, China e África do Sul, além do Brasil. O trabalho da Rede BLH foi reconhecido como o que mais contribuiu para a redução da mortalidade infantil no mundo na década de 1990 e a rede foi agraciada com o Prêmio Sasakawa de Saúde, em 2001.
Continue a leitura da reportagem no site da revista Radis.
Confira a edição (256) da Radis de janeiro de 2024 na íntegra.
Mais em outros sítios da Fiocruz