25/04/2023
Danielle Monteiro (Ensp/Fiocruz)
O consumo de invertebrados é um componente importante da dieta tradicional de diversos povos indígenas. É o caso dos Paiter Suruí, cuja rica cultura alimentar inclui diversas espécies de insetos e crustáceos. Embora essa diversidade continue presente na alimentação do povo indígena, o consumo de alguns invertebrados pode ter diminuído nas últimas décadas. A redução pode estar relacionada com as influências da interação com a população não indígena. A conclusão é de artigo publicado na revista Human Ecology, de autoria de pesquisadores de diversas instituições do país. O primeiro autor, Ariel Molina, é do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). A publicação conta ainda com a participação de um pesquisador Paiter Suruí vinculado à Universidade Federal de Rondônia.
A pesquisa investiga as continuidades e mudanças na dieta dos Paiter Suruí ao longo do tempo. Uma das fontes utilizadas na publicação é um conjunto de estudos realizados pelo antropólogo e pesquisador da ENSP, Carlos Coimbra Jr., entre o final dos anos 1970 e o início da década de 1980, em diversas comunidades na Terra Indígena Sete de Setembro. Coimbra é um dos coordenadores do grupo de pesquisa Saúde, Epidemiologia e Antropologia dos Povos Indígenas, cadastrado no CNPq e um dos mais antigos sobre a temática no país. Com detalhadas análises acerca da classificação e utilização de animais e plantas pelos Paiter Suruí, os estudos realizados por Coimbra descrevem os padrões de alimentação do povo indígena quatro décadas atrás.
A pesquisa de campo de Molina e colaboradores foi conduzida entre 2017 e 2020 na aldeia Joaquim, Terra Indígena Sete de Setembro, situada na fronteira entre os estados de Rondônia e Mato Grosso. Para a realização do estudo, foram entrevistados adultos residentes no território. A pesquisa também envolveu visitas guiadas e observação participante para a obtenção de dados adicionais sobre os invertebrados utilizados na alimentação, assim como seu manejo e métodos de coleta.
Atualmente cerca de 1.500 Paiter Suruí vivem em 27 aldeias na Terra Indígena Sete de Setembro. O contato permanente com não indígenas aconteceu em 1969, culminando em severas epidemias que reduziram a população indígena. No território Paiter Suruí, foram implantados inúmeros projetos de colonização nas décadas seguintes, que provocaram intensas levas migratórias. “Desde o início da colonização acelerada do estado de Rondônia entre 1960 e 1970, a região tornou-se conhecida pela exploração madeireira, agropecuária e, mais recentemente, pela extração de diamantes, atividades que ameaçam a floresta e os meios de subsistência dos povos indígenas da região“, alertam os autores do estudo.
Os pesquisadores constataram que larvas de besouros e de outros insetos continuam a ser manejadas e consumidas com frequência pelos Paiter Suruí. Foram identificados ao total 61 invertebrados na alimentação da população. Mas, com base em dados sistematizados a partir dos relatos dos entrevistados, observou-se que o consumo de invertebrados, de forma geral, diminuiu em comparação com informações reportadas em estudos prévios sobre padrões alimentares do povo indígena.
Além das influências decorrentes das interações com populações não indígenas ao longo de décadas, as comunidades Paiter Suruí, em anos mais recentes, foram severamente afetadas pela pandemia de Covid-19, conforme narram os autores do artigo: “Eles perderam alguns de seus idosos e essa perda pode impactar diretamente em seus saberes tradicionais e modificar suas estruturas sociais como um todo. Esses dois fatores podem limitar a capacidade dos Paiter Suruí de continuar usando esses recursos alimentares tradicionais”.
Os pesquisadores também observaram que os Paiter Suruí aprimoraram o manejo de certas plantas das quais extraem os insetos, por meio do uso de tecnologias às quais tiveram acesso em anos recentes. Como os invertebrados podem influenciar a reprodução de certas plantas, a remoção dos animais para alimentação pode contribuir para a abundância dessas espécies de vegetais na floresta, segundo os pesquisadores: “Conseqüentemente os Paiter Suruí aumentaram a eficácia de seu manejo da paisagem para estimular a produção de seus invertebrados favoritos e, nesse processo, possibilitaram que as espécies de plantas das quais eles dependem florescessem, chamando a atenção para as interações entre plantas, insetos e humanos”.
Segundo o antropólogo e pesquisador da ENSP, Ricardo Ventura Santos, estudos como esse são muito importantes, pois resgatam memórias, práticas e conhecimentos. “Essa publicação na Human Ecology, em associação aos estudos de Coimbra, evidenciam a centralidade das pesquisas acadêmico-científicas em debates acerca de questões contemporâneas dos povos indígenas e dos Paiter Suruí em particular, os quais valorizam muito os conhecimentos e práticas alimentares tradicionais. Pesquisas como as de Coimbra são muito raras na literatura, pela profundidade temporal e detalhado conteúdo científico, e se mostram fundamentais para investigações contemporâneas sobre mudanças em padrões de alimentação e utilização de recursos em territórios indígenas. Essa conjunção de investigações é um exemplo de que, efetivamente, se pode dar contribuições científicas com impacto social, cultural e político para os povos indígenas, sempre pensando na importância de relações mais simétricas”, afirma.
Centralidade da segurança alimentar e nutricional
A segurança alimentar e nutricional é pauta central do movimento indígena. Em manifesto lançado em novembro de 2020, durante a pandemia de Covid-19, organizações indígenas anunciaram a organização de diversas mobilizações on-line “para articular, através do plano Emergência Indígena, a entrega de mais de 100 toneladas de cestas básicas para garantir a segurança alimentar dos povos indígenas”.
A alimentação e nutrição são temas que têm recebido acentuada atenção no campo dos estudos sobre saúde dos povos indígenas. No capítulo Sociodiversidade, alimentação e nutrição indígena, do livro Vigilância alimentar e nutricional para a saúde indígena, o professor da Universidade Federal de Santa Catarina, doutor em Saúde Pública pela ENSP, Mauricio Soares Leite, alerta que em muitas áreas indígenas não é mais possível caçar, pescar ou, até mesmo, fazer uso da agricultura, devido à escassez de território disponível. Além do esgotamento dos recursos naturais, existem outros fatores que ameaçam a segurança alimentar e nutricional dos povos indígenas, conforme narra o autor em trecho do capítulo: “Há desde a disputa pela posse propriamente dita da terra, como é o caso dos conflitos com posseiros e fazendeiros, até a luta pelos recursos localizados nos limites das terras indígenas, como é o caso da ação de garimpeiros, madeireiros, caçadores e pescadores. No caso dos garimpos e da extração de madeira, há o agravante do impacto ambiental dessas atividades, que comprometem a utilização posterior das áreas para a produção de alimentos por longos períodos”.
A contaminação por mercúrio, especialmente na região amazônica, é mais um fator agravante destacado por Leite na publicação: “O metal pode provocar sérios distúrbios neurológicos, sendo capaz de afetar populações localizadas a quilômetros de distância dos garimpos. O mercúrio chega à alimentação das populações indígenas através do pescado, encontrado principalmente sob a forma de metil-mercúrio, extremamente tóxico para os seres humanos. O problema assume dimensões preocupantes diante da importância da pesca na dieta de diversas populações indígenas da região, como os Warí, os Mundurukú e os Kayabí, entre tantas outras”. A agricultura no entorno das terras indígenas, segundo o autor, também provoca impactos negativos, pois é causa de contaminação das fontes d’água por resíduos de pesticidas e fertilizantes.
No entanto, apesar de sua importância, nem sempre o acesso e disponibilidade de terras e recursos naturais garante a segurança alimentar e nutricional dos povos indígenas. Conforme relatado no texto de Leite, existem comunidades indígenas que, embora tenham suas terras há um longo tempo demarcadas e não vivenciem conflitos com madeireiros, garimpeiros ou posseiros, ainda assim, sofrem de condições nutricionais insatisfatórias, com elevadas prevalências de desnutrição infantil. É o caso dos Warí, cuja economia tem como base a produção de farinha de mandioca, o que faz a população estar em nível desigual de competição no mercado regional: “Isso aponta para a relevância de fatores muitas vezes desconsiderados nas análises da situação alimentar e nutricional das comunidades indígenas e para os possíveis efeitos do sinergismo entre esses fatores”.
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