24/03/2023
Ricardo Valverde (Agência Fiocruz de Notícias)
O processo eleitoral para a Presidência da Fiocruz faz parte de uma história de gestão democrática e participativa construída ao longo das últimas décadas. Na campanha eleitoral, com regras definidas por regulamento, os eleitores (servidores da Fiocruz de todos os estados em que a instituição está presente) participam de debates, discutem ideias e fazem a sua opção direta e livremente. A escolha do dirigente máximo da instituição pelos servidores teve início em 1989, junto com os ventos democráticos que apenas quatro anos antes voltaram a arejar o Brasil. O processo democrático da Fundação acompanhou a redemocratização do país.
“A primeira eleição para a Presidência da instituição, em 1989, deve ser encarada como parte do processo de democratização de tomada de decisão da Fundação, que teve íntima relação com a situação de normalização institucional que o país vivia, com o fim do regime militar”, afirma o sociólogo Arlindo Fábio Gómez de Sousa. Ele entrou para a Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz) em 1967, ocupou diversos cargos de direção na Fundação e participou ativamente de todos os processos eleitorais.
Esse processo começou com a posse do sanitarista Sergio Arouca, reconhecido como uma grande liderança intelectual na área da Saúde, como presidente da Fiocruz, em 1985 – mesmo ano em que Tancredo Neves foi eleito presidente da República. Arlindo participou do processo, legitimado pela comunidade da Fiocruz, que permitiu a Arouca ser nomeado à Presidência da Fundação pelo presidente da República, José Sarney, após indicação do ministro da Saúde, Carlos Sant’Ana. De acordo com Arlindo, Arouca, alçado à Presidência da Fundação, veio com a ideia, corrente entre os sanitaristas, de abrir a instituição para a participação e gestão democrática.
O médico Paulo Gadelha, na Fiocruz desde 1985 e eleito presidente da Fundação para dois mandatos, avalia que “o campo da saúde pública foi uma das áreas mais bem-sucedidas daquela renovação. A inauguração da presidência Arouca foi o ponto de partida para uma gestão participativa que nunca tinha ocorrido. E como se deu? Arouca recriou programas e estruturas e começou do zero. Em um primeiro momento, de certa forma improvisada, Arouca criou novas unidades, como a Casa de Oswaldo Cruz, a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, o Departamento de Farmacodinâmica do IOC. Ele reconfigurou instâncias administrativas e injetou vida em uma instituição que tinha sido castrada por muitos anos”.
Segundo Gadelha, surgiu então a ideia de promover um Congresso Interno, a partir de uma experiência anterior ocorrida na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), que também vivia um processo de renovação. “Nasceu a vontade de fazer algo semelhante na Fiocruz, como uma estatuinte. Trabalhar com teses, realizar uma avaliação da instituição, de seu processo representativo. Aquele foi o grande marco fundador da moderna Fiocruz e obteve um sucesso estrondoso. Foi a primeira experiência democrática que muitos viveram. Pela amplitude, era uma coisa inédita em uma instituição federal. Esse processo desembocou, depois de muito empenho e participação da comunidade, no Estatuto da Fiocruz”.
Gadelha afirma que apareceram naquele momento histórico muitas das características existentes até hoje na Fiocruz: a eleição do presidente e dos diretores das unidades, a instituição de colegiados e o Conselho Deliberativo (CD). “A existência do CD, que está acima do presidente, foi uma grande novidade, assim como as Câmaras Técnicas e, mais tarde, o Coletivo de Dirigentes. E como soberano, a mais alta instância da Fundação, encontra-se o Congresso Interno, cuja primeira edição ocorreu em 1988”, ressalta o ex-presidente. Gadelha foi secretário e coordenador das plenárias dos Congressos Internos desde a criação desse fórum deliberativo, em 1988, até 2009. Ele também foi um dos responsáveis pela elaboração do Estatuto da Fiocruz.
O 1º Congresso Interno, visto como uma "estatuinte", marcou o nascimento das bases do projeto institucional e do modelo de gestão que, em linhas gerais, permanece até hoje. Ali foram definidos os fundamentos da identidade institucional e a abrangência de suas áreas de atuação, as visões que norteiam os macroprocessos de pesquisa, desenvolvimento tecnológico, produção, ensino, serviços e informação e comunicação e definidas prioridades programáticas. Arlindo e Gadelha salientam que esse processo levou a Fiocruz a continuamente aperfeiçoar a prática democrática.
O processo eleitoral para a Presidência da Fiocruz foi instituído e aprovado pelo 1º Congresso Interno. Em meio à redemocratização, à organização da 8ª Conferência Nacional de Saúde (1986) – da qual Arouca foi coordenador e na qual a Fiocruz ocupou um papel de protagonismo – e à criação do Sistema Único de Saúde (SUS), a comunidade da Fiocruz, reunida na 2ª Plenária Extraordinária do 1º Congresso Interno, redefiniu os objetivos e a estrutura organizacional. Assim, o 1º Congresso Interno, em que estavam representados delegados eleitos de todas as unidades da Fundação, aprovou um Regimento Eleitoral que instituiu mandatos para o cargo de presidente da Fiocruz e para os diretores das unidades por meio de processos eletivos, a fim de garantir os princípios de representatividade e descentralização decisória. O presidente da Fiocruz é nomeado pelo presidente da República por indicação do ministro da Saúde, após a escolha de um candidato de uma lista tríplice, eleita pelo voto pela comunidade da Fundação e definida em regimento próprio.
Primeira eleição na Fiocruz e a legitimidade da lista tríplice
No final de 1989, houve a primeira eleição para presidente da Fiocruz, com quatro candidatos: Akira Homma, o médico e biofísico Carlos Morel, o pesquisador José Rodrigues Coura e o próprio Arlindo. Os nomes de Akira, Arlindo e Morel, pela ordem os mais votados, foram apresentados no início de 1990 ao ministro da Saúde, Alceni Guerra, por meio de uma lista tríplice, seguindo o mesmo caminho do que é feito nas eleições para reitores das universidades federais. No entanto, o presidente da República, Fernando Collor de Mello, que havia vencido a eleição nacional no ano anterior e acabara de assumir o cargo, alegou que o processo não estava previsto no então Estatuto da Fiocruz.
A não aceitação do resultado, em 1990, levou a uma forte reação da comunidade, apoiada por outras instituições das áreas de saúde e ciência. Diante desse impasse, Guerra então convocou representantes da Fundação para uma reunião em Brasília. A partir daí, houve uma rápida articulação interna e o Conselho Deliberativo da Fiocruz indicou o pesquisador Luiz Fernando Rocha Ferreira da Silva, então o mais antigo vice-presidente em exercício, como presidente interino.
O diálogo com o ministro começou a pôr fim ao impasse e, em junho de 1990, ocorreu a nomeação do virologista Hermann Schatzmayr, considerado apaziguador e de consenso, além de um pesquisador respeitado, para a Presidência da Fiocruz. Anos mais tarde, ao recordar aquele momento, o virologista disse que “na época tínhamos acabado de isolar o vírus do dengue 2 e recebi um telefonema de Brasília solicitando que eu fosse com urgência para lá. Levei todo o material de dengue 2, mas não era sobre isso que queriam tratar comigo. O ministro da Saúde queria me nomear presidente da Fiocruz. Levei um susto. Aquilo não era meu perfil”. Depois de conversar com a família ele aceitou o cargo, já que o impasse e a falta de um presidente efetivo estavam criando dificuldades na gestão e no dia a dia da Fundação.
Em 1992, com o impeachment de Collor e a posse de Itamar Franco, teve início uma movimentação da comunidade da Fiocruz que visava garantir a nomeação de um dos nomes da lista tríplice. Crescia a pressão interna, com o que Hermann concordava, e os três integrantes da lista assinaram o documento “Nosso compromisso é com a Fiocruz”. Como Akira, naquele momento, estava envolvido com a Opas para a criação, no Brasil, do Programa Nacional de Imunização, e com outros projetos de desenvolvimento de vacinas, decidiu declinar da participação na lista tríplice, embora a aprovasse. A Fundação então remeteu os nomes dos dois remanescentes da lista (Arlindo Fábio e Carlos Morel) ao ministro da Saúde, Jamil Haddad. Ele aceitou a proposta e nomeou Morel, que havia sido vice-presidente de Pesquisa da Fundação na gestão Sergio Arouca, como presidente. O processo eleitoral de 1989 havia finalmente sido respeitado.
Desde então, todas as eleições na Fiocruz foram respeitadas pelo Governo Federal. Com apoio maciço de toda a comunidade da instituição, em 2003, o governo aprovou o novo Estatuto da Fiocruz, reforçando ainda mais a legitimidade do processo eleitoral e conferindo suporte legal a ele.
Pioneirismo da Fiocruz se consolida com democracia interna
Carlos Morel, que havia sido vice-presidente durante a gestão de Sergio Arouca, foi presidente de 1992 a 1997, quando optou por deixar o cargo e não concorrer à reeleição. Entre as gestões de Schatzmayr e Morel a Fiocruz teve outro presidente interino: Euclides Ayres de Castilho.
O pesquisador Eloi Garcia, que também tinha sido vice-presidente de Pesquisa, venceu a eleição de 1996 e foi nomeado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso. Chegava à Presidência um pesquisador que muitos anos antes, em 1964, ao passar a bordo de um ônibus pela Avenida Brasil, vindo de Minas Gerais, e ver pela primeira vez o Castelo de Manguinhos, se lembra de ter ficado "arrepiado".
O pediatra e sanitarista Paulo Buss, ex-diretor da Escola Nacional de Saúde Pública, tomou posse em 2001. Buss foi eleito pela primeira vez em 2000, após ter perdido – por uma pequena porcentagem de votos – a eleição de 1996. E foi reeleito em 2004, quando pela primeira vez houve apenas uma candidatura. Foi na vitoriosa campanha de Paulo Buss, em 2000, que surgiu o mote "Orgulho de ser Fiocruz", representando o contentamento, por parte dos servidores, de pertencerem a uma instituição que vive plenamente a democracia e a gestão participativa.
Em seguida houve o período do médico Paulo Gadelha como presidente da Fundação. Gadelha, que foi vice-presidente de Desenvolvimento Institucional, Informação e Comunicação (2001 a 2004) e vice-presidente de Desenvolvimento Institucional e Gestão do Trabalho (2005 a 2008), ao concorrer pela primeira vez, em 2004, também foi candidato único. Na reeleição, em 2008, concorreu com a pesquisadora Tania Araújo-Jorge.
Ao deixar o cargo, em janeiro de 2017, Gadelha, profundo conhecedor da história da Fiocruz, fez questão de reforçar o papel pioneiro da instituição desde o tempo daqueles que chama de Pais Fundadores, como Oswaldo Cruz e Carlos Chagas, entre outros, tanto nas áreas da ciência e da saúde pública, quanto na de cidadania.
"Enxergar longe no tempo e no espaço continua sendo uma característica desta Fundação", afirma Gadelha. "A Fiocruz é uma instituição estratégica do Estado brasileiro. Não existe experiência exitosa de desenvolvimento que tenha prescindido do Estado, e a Fiocruz comprova essa tese de maneira exemplar", completa.
A eleição de 2016 pela primeira vez alçou uma mulher ao maior cargo da instituição. A socióloga Nísia Trindade Lima, que tinha ocupado a Vice-Presidência de Ensino, Informação e Comunicação, concorreu com a pesquisadora Tania Araújo-Jorge e foi a mais votada. Nísia tomou posse em janeiro de 2017 e foi reeleita em 2020. Ela deixou a Presidência da Fiocruz em janeiro de 2023, ao assumir o cargo de ministra da Saúde.
Arlindo Fábio Gómez de Sousa avalia que o início do processo democrático da Fiocruz corresponde plenamente ao que se viveu no Brasil a partir da redemocratização. "Houve a campanha pelas Diretas Já, com a vontade de todos participarem e escolherem os dirigentes. As condições externas eram favoráveis à implantação de um processo democrático na Fiocruz. O país aspirava à liberdade". E já em 1985 ocorreu a primeira eleição para diretor de uma unidade, quando os servidores da Ensp/Fiocruz escolheram o médico Frederico Simões Barbosa como diretor. A partir daí as demais unidades também passaram a escolher seus dirigentes pelo voto dos servidores.
Para o sociólogo, a Fiocruz, uma instituição de C&T&I que tem um processo interno de escolha de seus dirigentes, com participação de todos, é sinônimo de democracia. "Estão aí o Congresso Interno, o Conselho Deliberativo, formado pelos diretores das unidades, os colegiados, as câmaras técnicas, as eleições para presidente e para diretores, os conselhos deliberativos de cada uma das unidades, a articulação com instituições de saúde, ciência e tecnologia, com universidades e o Congresso Nacional. A unidade da comunidade no apoio a esses instrumentos ajuda a viabilizar os avanços no processo de democratização, que está sempre inovando".