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Pesquisas mostram como o não acesso à água e ao esgoto afeta outros direitos sociais

Crianças lavando as mãos

17/03/2017

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Por: Keila Maia (Fiocruz Minas)

Sete anos após a Organização das Nações Unidas (ONU) ter declarado o acesso à água e ao esgotamento sanitário como um direito humano fundamental, uma pesquisa realizada na Fiocruz Minas mostra que a violação dessa prerrogativa afeta uma série de outros direitos sociais, como educação, saúde e até mesmo o direito de ir e vir. O estudo, desenvolvido pela doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva Priscila Neves, teve como foco a população em situação de rua do município de Belo Horizonte e, por meio de uma análise qualitativa, apontou que, devido à precariedade no acesso à água e ao esgotamento sanitário, tal público acaba sendo excluído de outras esferas da vida social e econômica.

Intitulada Direitos humanos e vulnerabilidade social: o acesso à água e ao esgotamento sanitário de pessoas em situação de rua, a pesquisa ouviu, no período de maio a julho de 2016, 24 pessoas (14 homens; 10 mulheres) que vivem na região central de Belo Horizonte. De acordo com a pesquisadora, os entrevistados declararam beber água proveniente de doações e recorrer às bicas e às fontes de água localizadas nas praças do município, para lavar roupas e se higienizar. Elas também disseram que se sentem muito mal por andarem sujas e deixam de ter acesso a serviços de saúde e de frequentar a escola porque nem sempre têm como tomar banho.

“Alguns dos entrevistados usam a expressão ‘lixo’ para dizer como se sentem. Aqueles que frequentam a Educação de Jovens e Adultos (EJA) revelaram faltar às aulas sempre que não podem tomar banho. Outros disseram que, ao procurar serviços de saúde, são orientados a fazer uma higiene corporal e, depois, procurar o atendimento novamente, o que acaba resultando em perda de assistência. E também foram vários os relatos de pessoas que disseram ser impedidas de entrar em um estabelecimento comercial para pedir um copo d´água por estarem sujas”, conta Neves. “Ou seja, a violação do direito à água viola também o direito à educação, à saúde, entre outros”, pontua.

Outro aspecto apontado pela pesquisa é que a falta de acesso ao esgotamento sanitário retira das pessoas o direito à privacidade. A maior parte dos entrevistados revelou defecar e urinar a céu aberto. Segundo a pesquisadora, eles também relataram que albergues e abrigos deixam de ser uma opção, justamente por não oferecem privacidade. “Os espaços que existem na cidade não dão conta da demanda e, mesmo quando há vagas, eles disseram não se sentir à vontade porque os banheiros não têm porta”, afirma.

De acordo com a pesquisa, para as mulheres, a situação pode ser ainda mais difícil porque, além de terem a intimidade escancarada, ainda sofrem assédio sexual. Depoimentos dão conta de que água e instalações sanitárias são, em algumas situações, colocadas como objeto de barganha em troca de favores sexuais.

“Todas essas questões fazem com que a população em situação de rua não se sinta pertencendo à sociedade. Isso fica claro porque muitos entrevistados usam o termo “sociedade” dando a entender que é algo externo a eles, da qual não fazem parte. E a falta de participação social leva ao acirramento das desigualdades”, destaca Neves.

Água, esgotamento e a desigualdade entre gêneros

Os resultados da pesquisa vão ao encontro das informações constantes do relatório Igualdade de gênero e direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário, elaborado pelo relator especial da ONU sobre esses direitos, Léo Heller, que também é pesquisador da Fiocruz Minas. O documento destaca que água e esgotamento sanitário não estão acessíveis de forma equivalente para homens, mulheres e outras identidades de gênero e que tal situação leva a outras desigualdades.

Divulgado no fim do ano passado, o relatório aponta que, em quase todas as localidades onde há falta ou má distribuição de serviços de saneamento, a tarefa de coletar água para manter a higiene do lar é atribuída às mulheres, o que leva a outros problemas.

“Isso subtrai delas um tempo que poderia estar sendo empregado em educação e em atividades remuneradas. Tal situação reforça a dependência econômica com homens, interferindo, inclusive, na capacidade delas de pagar por serviços de água e esgotos”, explica Heller. Segundo ele, meninas e mulheres também experimentam o stress psicossocial, causado pelo medo da violência sexual, bem como de serem atacadas por animais nas zonas rurais, durante a atividade de transportar a água e ao se dirigirem a locais para defecação.

Por falta de espaços adequados, de acordo com o pesquisador, as mulheres também costumam reter a urina por longos períodos de tempo, o que pode aumentar o risco de infecções de bexiga e rins. A inadequação dos espaços públicos também atinge os transgêneros que, ao usarem instalações sanitárias separadas pelo sexo biológico, ficam expostos a agressões morais e físicas.

Serviços

Os impactos negativos gerados pela falta de acesso à água e ao esgotamento sanitário reforçam a importância de se promover uma ampla discussão sobre a forma como esses serviços são oferecidos. Entretanto, nos últimos meses, uma série de ações aponta para mudanças na política de saneamento do Brasil sem que tenha ocorrido nenhum debate com a sociedade. Exemplo disso é edital lançado recentemente pelo o governo federal, por meio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), com o objetivo de contratar estudos técnicos para concessão à iniciativa privada de serviços de saneamento básico em 18 estados. Já no Rio de Janeiro, a Assembleia Legislativa do Estado aprovou, no mês de fevereiro, um projeto de lei permitindo a privatização da Companhia Estadual de Água e Esgoto (Cedae).

“Trata-se de uma reorientação na atual política de saneamento que está sendo feita sem qualquer discussão e sem que se tenha realizado uma revisão de experiências nas diversas regiões do mundo. França, Alemanha e Argentina são exemplos de países que estão remunicipalizando os serviços porque a experiência com a iniciativa privada não deu certo. Os motivos foram vários: preço elevado, descumprimento de contratos, serviço centrado no lucro, entre outros”, destaca Heller.

O pesquisador ressalta que os serviços oferecidos atualmente também estão longe do ideal. Segundo ele, a crise de abastecimento de água ocorrida nos últimos anos em diversos Estados do Brasil deixou claro que faltam planejamento e investimento em infraestrutura, capazes de evitar perdas e garantir o abastecimento nos períodos em que o volume de chuvas é baixo.

“As mudanças climáticas ocorrem, e o planejamento tem que levar isso em consideração. Além disso, o sistema de água tem muitas perdas, por exemplo, por vazamento. Hoje, mais da metade da água adequada para consumo não chega às casas; perde-se”, afirma.

Para a pesquisadora Maria Inês Pedrosa Nahas, do Grupo de Políticas Públicas e Direitos Humanos em Saúde e Saneamento da Fiocruz Minas, quando a água deixa de chegar aos domicílios, quem sofre primeiro as consequências do desabastecimento é a população de baixa renda e de pouca escolaridade. Nahas está à frente de um estudo que vem sendo realizado na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), com o intuito de estruturar um sistema de indicadores, tendo em vista o objetivo 6 da Agenda Global 2030, que é “assegurar a disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento para todos”. A pesquisa avalia o estágio em que os municípios se encontram em relação ao alcance das metas propostas para o cumprimento desse objetivo.

“O tema da falta de água ganha destaque quando o problema atinge a classe média. Entretanto, uma parcela significativa da população convive com essa questão diariamente. Em alguns municípios da RMBH, falta acesso à água ou ao esgotamento adequado em quase 100% das casas”, revela.

A pesquisa, que faz uma análise dos dados coletados nos censos demográficos realizados pelo IBGE nos anos de 2000 e 2010, indica que, além da renda e da escolaridade, o fato de estar situado em área urbana ou rural influencia no acesso à água e ao esgotamento. Por exemplo, em 2010, 97% dos domicílios localizados na área urbana eram atendidos adequadamente pelo serviço de abastecimento de água; enquanto, na área rural, esse percentual era de 84%.

“Já em relação ao esgotamento sanitário, eram 89% com acesso adequado na área urbana e apenas 37% na área rural”, afirma Arlete Soares, do Grupo de Políticas Públicas e Direitos Humanos em Saúde e Saneamento. “Se essa disparidade acontece entre os municípios da Região Metropolitana de BH, imagine em localidades mais distantes”, avalia.

No Brasil, segundo o Sistema Nacional de Informação sobre Saneamento, o percentual de pessoas com solução adequada para o abastecimento de água é de 83%. Em relação à coleta de esgoto esse número cai para 50% e, no que se refere a tratamento de esgotos, desce para 42%. “Tudo isso tem impacto na saúde, na qualidade de vida e também no meio ambiente. Problemas relacionados ao esgotamento sanitário adequado significam esgoto indo para os cursos d´água”, lembra Léo Heller.

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