15/12/2014
Por: Maíra Menezes (IOC/Fiocruz)
Cientistas do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) encontraram bactérias resistentes a antibióticos nas águas do Rio Carioca, que atravessa diversos bairros da capital fluminense. Mais comumente detectadas no ambiente hospitalar, as bactérias produtoras da enzima KPC foram identificadas em amostras de água coletadas em três pontos na Zona Sul da cidade: no Largo do Boticário, no Cosme Velho; no Aterro do Flamengo, antes da estação de tratamento do rio; e na foz do Rio Carioca, no ponto onde ele desagua na Praia do Flamengo. Segundo a pesquisadora do Laboratório de Pesquisa em Infecção Hospitalar do IOC, Ana Paula D'Alincourt Carvalho Assef, coordenadora do trabalho, é preciso ter atenção para a possibilidade de disseminação deste tipo de resistência aos antibióticos, o que pode dificultar o controle de algumas infecções. “Até o momento, não houve registro de contaminação entre frequentadores dos ambientes estudados. Ainda assim, os resultados da pesquisa foram enviados para as autoridades competentes, que podem avaliar as medidas a serem adotadas”, declara a microbiologista, lembrando que a Praia do Flamengo é frequentada por banhistas e fica perto da Marina da Glória, que será palco de competições de vela nas Olimpíadas de 2016.
As bactérias encontradas produzem uma enzima chamada KPC, característica que as torna resistentes aos principais antibióticos utilizados no combate a estas infecções. De acordo com Ana Paula, as doenças causadas por estes micro-organismos são iguais àquelas provocadas por bactérias comuns, mas os tratamentos exigem antibióticos mais potentes. Uma vez que as superbactérias são resistentes aos medicamentos mais modernos, os médicos precisam recorrer a drogas que estavam em desuso por serem tóxicas para o organismo – como a polimixina. “Mergulhar num rio onde há bactérias produtoras de KPC é como mergulhar em qualquer rio poluído. Existe o risco de contrair doenças, que não são mais graves do que as causadas por outros micro-organismos. O problema é que, no caso de uma eventual infecção, é possível que o tratamento exija uma abordagem de internação hospitalar”, afirma a pesquisadora.
Além do risco para a população, os cientistas consideram que a principal ameaça é a disseminação da resistência, que ocorre na medida em que as bactérias são capazes de transmitir genes umas para as outras. “Os genes que estão associados à resistência aos antibióticos podem estar localizados em elementos móveis dentro das bactérias, que podem ser multiplicados e transferidos para outros micro-organismos. Fazendo uma analogia, é como se as bactérias trocassem figurinhas de mecanismos de resistência. Assim, a água pode se tornar uma biblioteca destes genes”, explica Carlos Felipe Machado de Araujo, aluno do programa de mestrado em Biologia Celular e Molecular do IOC e também autor da pesquisa.
As bactérias produtoras de KPC identificadas no Rio Carioca são classificadas como enterobactérias, uma família que reúne micro-organismos encontrados frequentemente colonizando o corpo humano – ou seja, vivendo normalmente no intestino e transitoriamente sobre a pele e mucosas. Porém, em alguns indivíduos, estes micro-organismos também podem ser agentes de doenças comuns, como infecções urinárias, gastrointestinais e pneumonias. Segundo Ana Paula, esta interação das bactérias com o homem e o ambiente aumenta o risco de propagação da resistência. “Ao entrar na água onde há bactérias produtoras de KPC, o banhista pode ser colonizado por estes micro-organismos. Mesmo que não fique doente naquele momento, eventualmente, ele pode carrear estas bactérias resistentes para o ambiente e para outras pessoas, estabelecendo um ciclo de disseminação”, explica a microbiologista.
Sobre as bactérias hospitalares
Assim como outras superbactérias, as produtoras de KPC foram inicialmente identificadas dentro dos hospitais. Nestes ambientes, o uso intensivo de antibióticos costuma exterminar as bactérias sensíveis às drogas e selecionar os micro-organismos que possuem alguma característica que os torna resistentes. O primeiro registro da enzima KPC foi feito nos Estados Unidos, em 2006, e esta forma de resistência se espalhou para unidades de saúde em todo o mundo. Até hoje, não há registro de infecções causadas por estas bactérias fora dos hospitais. No entanto, os cientistas temem rever um filme assistido mais de 20 anos atrás.
“Nos anos 1980, surgiram nos hospitais bactérias produtoras de enzimas chamadas ESBLs, que as tornavam resistentes a diversos antibióticos. Após se disseminar em unidades de saúde, micro-organismos carreando este mecanismo de resistência chegaram à população em geral, causando infecções comunitárias, e hoje são encontrados até mesmo em animais silvestres. Para combater as bactérias produtoras de ESBL, tivemos que usar antibióticos da classe dos carbapenemas. Então, surgiram as bactérias produtoras de KPC, que são resistentes a estas drogas. O receio é que essa forma de resistência também saia dos hospitais para a comunidade”, alerta Ana Paula.
Dos hospitais para o ambiente
A possibilidade de disseminação das bactérias produtoras de KPC para o ambiente já preocupa os cientistas há alguns anos. Em 2010, o Laboratório de Pesquisa em Infecção Hospitalar do IOC publicou um artigo científico apontando a presença destas superbactérias no esgoto hospitalar carioca mesmo após o tratamento. Já no final do ano passado, a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) comunicou, no Congresso Brasileiro de Microbiologia, que havia identificado a presença destes micro-organismos nas praias do Flamengo e de Botafogo. Agora, o novo estudo do IOC indica um dos prováveis caminhos percorridos pelas superbactérias, que são carreadas pelo Rio Carioca até o desague na praia. “O Rio Carioca corta diversos bairros e reconhecidamente recebe lançamento de esgoto. Nós não encontramos estes micro-organismos no alto da Floresta da Tijuca, perto da nascente do rio. O primeiro ponto em que detectamos a sua presença foi no Largo do Boticário, após o rio atravessar áreas com moradias e hospitais”, afirma Ana Paula.
Os pesquisadores ressaltam ainda que a chegada das superbactérias até a foz do rio pode ter duas explicações. “É possível que as bactérias tenham sido encontradas na chegada do rio à Praia do Flamengo porque conseguiram sobreviver ao tratamento realizado ou porque não houve tratamento da água naquele determinado momento”, explica Carlos.
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