26/04/2017
Por Adriano de Lavour/ Reportagem publicada na Revista Radis de abril de 2017
Em tramitação na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei 4.930/16, que condiciona a concessão do registro profissional de enfermagem à aprovação em um exame de suficiência, não é consenso entre estudantes, profissionais, nem entre as entidades que os representam. De um lado, há opiniões favoráveis, que alegam que o teste servirá para avaliar “competências mínimas” dos profissionais e dar mais segurança aos pacientes; do outro, críticas de que a lei, caso aprovada, acentuará a injustiça social, já que “penaliza quem busca ascender socialmente pelos caminhos da enfermagem”.
O projeto — de autoria do deputado baiano Lúcio Vieira Lima (PMDB), a partir de iniciativa do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) — altera a Lei nº 7.498, de 25 de junho de 1986, que regulamenta o exercício da enfermagem, incluindo teste que avalia a capacidade do profissional em realizar atribuições técnicas depois de formado, a ser aplicado pelo próprio Cofen. O objetivo do teste é garantir o exercício profissional de qualidade por meio da avaliação de “competências mínimas”, como assegurou a conselheira federal Dorisdaia Humerez, cuja expectativa é que a proposta seja aprovada até o fim do primeiro semestre. Por telefone, ela explicou à Radis que a iniciativa do conselho se deu diante do crescente aumento no número de vagas de formação em enfermagem na modalidade de Educação à Distância (EAD). Segundo ela, são oferecidas no Brasil mais de 160 mil vagas presenciais de graduação em enfermagem, metade delas ociosas. Na modalidade EAD, o número saltou de 938 para 1.778 desde julho de 2015, quando o Sistema Cofen/Conselhos Regionais realizou a Operação EAD — um aumento avassalador de 89,3% em um ano.
Dorisdaia informou que a Operação EAD também constatou que muitos polos presenciais — onde a parte prática destes cursos é ministrada — funcionavam de forma precária, comprometendo a formação dos futuros profissionais. Em declaração à Agência Câmara (25/1), o autor do projeto informou que alguns destes cursos dedicam apenas 7,8% da carga horária às atividades práticas. A conselheira alertou para as falsas vantagens oferecidas pelos cursos à distância, lembrando que muitas vezes os preços mais acessíveis são sinônimos de falta de estrutura, ausência de biblioteca e precariedade no ensino prático. Também advertiu para as promessas de ensino na modalidade semipresencial que, segundo ela, não existe oficialmente.
A avaliação de suficiência, no entanto, não é consensual. A presidente da Associação Brasileira de Enfermagem (Aben), Rosa Godoy, recomenda cautela em relação ao projeto, alegando que fazer avaliação de competência somente com o profissional e não intervir na instituição formadora pode não ser justo. À Radis, Rosa reforçou a posição da Aben, que em agosto de 2016 já havia se posicionado contrária à mudança, durante 15º Seminário Nacional de Diretrizes para a Educação em Enfermagem (Senaden). No documento produzido ao fim do evento, os participantes consideraram que a medida responsabiliza o indivíduo e “acentua a injustiça social e as condições de desigualdade e iniquidade, além de penalizar quem busca ascender socialmente pelos caminhos da enfermagem”. Na apresentação que fez no Senaden, a enfermeira Kenia Lara da Silva, da Aben de Minas Gerais, argumentou, com base em pesquisa que fez sobre o assunto, que a avaliação promoverá uma “seleção profissional predatória”, com maior impacto sobre os estudantes de menor renda e maiores responsabilidades familiares, especialmente mulheres pretas e pardas que iniciam a carreira na maturidade. “O exame pune quem não é para ser punido. Um estudante que conseguiu driblar dificuldades sociais e às vezes étnicas e que teve um itinerário pedagógico nem sempre de qualidade poderá ser punido, quando se deve pensar na avaliação do processo e no investimento de qualidade nas instituições de ensino”, registrou. Rosa reconhece que a proliferação de cursos de formação à distância é um problema a ser discutido e enfrentado, mas discorda da solução proposta pelo PL 4.930. “É preciso fiscalizar, sim, os profissionais, mas isentar das instituições formadoras desta responsabilidade não é justo”, pondera.
Quem defende a mudança argumenta que o exame proposto será semelhante ao que já é aplicado por outros conselhos de classe, como o de Contabilidade e o de Direito, e que a responsabilidade de fiscalizar os cursos é do Ministério da Educação. Dorisdaia informou ainda que há outro projeto de lei sobre o tema em tramitação no Congresso [o PL 2.891/2015, de autoria do deputado Orlando Silva (PCdoB/SP), que também altera a Lei nº 7.498, para nela incluir a obrigatoriedade de formação exclusivamente em cursos presenciais para os profissionais da área], mas que a sua aprovação esbarra na pressão exercida pelas instituições de ensino. Ela discorda que o exame de suficiência vai penalizar o aluno: “Nós vamos exigir competências mínimas. Se não conseguirem, é porque não têm condições de trabalhar”, argumentou. A conselheira salientou que o projeto também visa à valorização do profissional, diminuindo a possibilidade de imperícia, imprudência e negligência.
Ambos os lados da questão, no entanto, defendem uma maior mobilização da categoria em relação à formação profissional: “Precisamos escutar os profissionais e estudar a questão”, defende Rosa. “É preciso assegurar o mínimo de compromisso dos profissionais, no sentido de garantir o ensino de qualidade”, argumenta Dorisdaia. Nas redes sociais, as opiniões se mostram divididas. A partir de uma provocação da Radis na página que mantém no Facebook, argumentos favoráveis e contrários foram registrados: “Concordo! Que se estenda inclusive para as demais profissões da saúde”, opinou a enfermeira Patrícia Melo, de Itajuípe (BA); “Será que os conselhos vão topar? Será que vai cair a arrecadação? Passou da hora de ser implementado isso. Aliás deveria ser obrigatório ao menos para todas as áreas da saúde”, opinou André Luiz Gonçalves, de São José do Rio Preto (SP). “O aluno será penalizado pela baixa formação. Por que o MEC e a Aben não intervieram, impedindo a abertura de cursos a cada esquina? Esse exame só vai favorecer os cursos preparatórios”, discordou a enfermeira Karina Cardoso Meira, do Rio Grande do Norte. “Não concordo. A proposta responsabiliza apenas o profissional pelo processo de formação, onde está o MEC para regulamentar e avaliar os cursos de enfermagem? Por que não investir na acreditação e certificação das instituições de ensino?!”, questionou, no mesmo espaço, Elen Gandra, de Belo Horizonte.
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