21/10/2014
Por Maíra Menezes/ Instituto Oswaldo Cruz
Cerca de 30% das pessoas com doença de Chagas crônica desenvolvem danos ao coração que podem levar à morte, como arritmia e insuficiência cardíaca. Sem tratamento específico para combater o problema, estes pacientes são medicados com drogas usadas para outras doenças do coração. Estes remédios podem controlar os sintomas e melhorar a qualidade de vida dos pacientes, mas não impedem o avanço das lesões causadas pela infecção. Agora, uma pesquisa liderada pelo Laboratório de Biologia das Interações do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) aponta um possível caminho para o desenvolvimento de novas terapias para os danos cardíacos. Segundo o estudo, reduzir os níveis de uma substância inflamatória – o fator de necrose tumoral, conhecido pela sigla em inglês TNF – impede a progressão e consegue até mesmo recuperar lesões no coração. O trabalho, realizado em colaboração com o Laboratório de Biologia Molecular e Doenças Endêmicas do IOC/Fiocruz e a Universidade Federal Fluminense (UFF), foi publicado na revista científica internacional Mediators of Inflammation. Acesse o artigo.
Causada pelo parasito Trypanosoma cruzi, a doença de Chagas afeta cerca de 12 milhões de pessoas, sendo aproximadamente três milhões no Brasil, de acordo com o Ministério da Saúde. Embora medidas como uso de inseticidas e melhoria das condições habitacionais possam interromper a transmissão do agravo, os pesquisadores destacam que a descoberta de novos tratamentos é fundamental para dar qualidade de vida aos pacientes. “A maioria dos portadores brasileiros já está na fase crônica da infecção. Além disso, na Bolívia, por exemplo, existem cidades onde o ciclo de transmissão não foi quebrado, como ocorreu no Brasil, e 70% da população é infectada. É importante encontrar soluções para que as crianças que estão contraindo o parasito neste momento não apresentem quadros graves no futuro”, ressalta a pesquisadora Joseli Lannes Vieira, chefe do Laboratório de Biologia das Interações do IOC/Fiocruz e coordenadora do estudo.
A pesquisa foi realizada em camundongos, que são capazes de reproduzir aspectos relevantes da forma cardíaca da doença de Chagas. Animais que já apresentavam sinais de danos ao coração foram medicados com a droga infliximab, que impede a ação do TNF no organismo e já é utilizada no tratamento de doenças autoimunes, como a artrite reumatoide. Após a terapia, os cientistas observaram melhora na função cardíaca dos camundongos. “Houve redução da fibrose do tecido cardíaco e recuperação da função elétrica, diminuindo, por exemplo, a ocorrência de arritmias”, relata a biomédica Isabela Resende Pereira, aluna do programa de doutorado em Biologia Celular e Molecular do IOC/Fiocruz e uma das autoras do estudo.
Desequilíbrio imunológico
O tratamento realizado no estudo parte de um princípio que pode ser surpreendente: em alguns pacientes, a reação imunológica desencadeada pelo organismo para combater os parasitosTrypanosoma cruzi que se alojam no músculo cardíaco termina danificando o coração. Segundo Joseli, os cientistas chegaram a esta hipótese depois de observar que indivíduos com cardiopatia chagásica grave apresentavam altos níveis de TNF solúvel no sangue, além de outros mediadores que estimulam a inflamação. Por outro lado, pessoas com formas leves da patologia tinham patamares baixos destes mesmos mediadores. “O TNF é uma molécula muito importante no começo da resposta às infecções. No entanto, nos pacientes graves, é como se a reação inflamatória intensa, que é benéfica na fase inicial da reação, fosse mantida durante anos, causando danos ao organismo”, explica a pesquisadora.
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O resultado positivo da terapia anti-TNF pode ser explicado por uma descoberta realizada pelo mesmo grupo de cientistas em 2012. Na ocasião, os pesquisadores identificaram dois tipos de células de defesa – chamadas de linfócitos CD8 – ativadas durante a infecção. Um tipo produzia uma molécula lesiva para as fibras musculares cardíacas (a perforina), enquanto o outro liberava uma molécula capaz de amenizar as lesões (o interferon-gama). A pesquisa destacava ainda que os linfócitos nocivos tinham como característica diferencial a expressão de TNF na superfície, o que poderia torná-los alvo de medicamentos anti-TNF. Foi exatamente isso que ocorreu com a administração de infliximab: a droga reduziu pela metade a quantidade de células prejudiciais no coração, preservando os linfócitos com ação benéfica. Saiba mais sobre o estudo publicado em 2012.
“É comum pensar que a resposta imune é sempre positiva para o organismo, mas nosso trabalho mostra que existe um componente inflamatório negativo na doença de Chagas”, afirma Joseli, acrescentando que a redução dos níveis de TNF não teve impacto sobre a quantidade de parasitos no coração dos animais. “Se o TNF fosse importante para controlar o T. cruzi na fase crônica da infecção, o número de parasitos teria aumentado após o tratamento. Nós realizamos diversos testes e confirmamos que isso não ocorreu”, ressalta.
Apesar dos resultados positivos, o tratamento não deve passar imediatamente para a fase de testes em pacientes. De acordo com Isabela, o grupo já está investigando outros medicamentos que podem ter um efeito semelhante ao do infliximab, sem o preço elevado da droga, que chega a custar R$ 5 mil para um período de 30 dias. “Esse trabalho foi uma prova de princípio para uma possível terapia. Nosso objetivo é oferecer uma opção de tratamento acessível para uma doença negligenciada, que atinge principalmente populações pobres”, diz a biomédica. Os cientistas também procuram substâncias com menos efeitos adversos, uma vez que o uso continuado do infliximab aumenta o risco de contrair doenças bacterianas, como a tuberculose. “Os pacientes que utilizam este medicamento precisam de cuidados especiais para prevenir infecções e isso pode ser difícil para pessoas de baixa renda”, acrescenta Joseli.
Histórico no Brasil
A doença de Chagas foi descoberta em 1909 pelo pesquisador brasileiro Carlos Chagas, que batizou o parasito causador da infecção de Trypanosoma cruzi, em homenagem ao cientista fundador da Fiocruz, Oswaldo Cruz. Os insetos triatomíneos, conhecidos popularmente com barbeiros, são os agentes transmissores mais frequentes da infecção. Nas áreas infestadas, eles costumam entrar pela janela ou por frestas nas paredes das casas e picar as pessoas à noite, geralmente durante o sono. Ao defecar próximo ao local da picada, os barbeiros liberam os parasitos, que são introduzidos na corrente sanguínea quando as pessoas coçam a pele, levando, involuntariamente, as fezes do inseto para a lesão.
Logo após a infecção, os pacientes apresentam um grande número de parasitos no sangue e podem ter sintomas como febre, dor de cabeça, fraqueza intensa e inchaço no rosto e nas pernas. Nesta fase da doença, o tratamento com drogas tripanossomicidas, capazes de matar os protozoários, costuma ser eficaz, embora tenha fortes efeitos colaterais. No entanto, em muitos casos a fase aguda da doença tem sintomas leves ou é assintomática, e a infecção acaba sendo descoberta no estágio crônico. Nesta etapa, os parasitos se alojam nos músculos do coração e do aparelho digestivo. Os pacientes podem permanecer anos sem sintomas, mas as lesões causadas nos órgãos vão se acumulando e, em 30% dos casos, os indivíduos apresentam complicações cardíacas, enquanto 10% têm problemas digestivos. Na fase crônica, não há ainda comprovação da eficácia dos medicamentos disponíveis.
Em 2006, o Brasil recebeu um certificado da OMS e da Organização Panamericana de Saúde (Opas) por ter conseguido interromper a transmissão da doença de Chagas pela espécie de barbeiro mais frequente no país: o Triatoma infestans. No entanto, segundo o Ministério da Saúde, nos últimos anos, estão surgindo novos casos da infecção devido a uma forma alternativa de transmissão ligada à contaminação de alimentos. Sobretudo na Amazônia, surtos de casos agudos vêm sendo registrados entre pessoas que consumiram suco de açaí e caldo de cana. As bebidas são contaminadas pelo T. cruziquando barbeiros infectados são moídos acidentalmente junto com os alimentos.
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