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Chacinas em presídios expõem reação de intolerância na sociedade

Mão dando soco

06/02/2017

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Por Ana Cláudia Peres/ Revista Radis

“Tinha era que matar mais. Tinha que fazer uma chacina por semana”. A declaração do secretário nacional de Juventude, Bruno Júlio (PMDB), publicada no site do jornal O Globo (6/1) sobre as chacinas que ocorreram nos presídios da Região Norte no início de janeiro, provocou a sua demissão no dia seguinte. Mas o que o episódio revela é uma escalada alarmante do discurso de ódio na sociedade brasileira. À Rádio CBN (4/1), o governador do estado do Amazonas, José Melo (Pros), disse que “não tinha nenhum santo” entre os 56 mortos no Complexo Anísio Jobim (Compaj), em Manaus, enquanto o secretário de Justiça e Cidadania do Rio Grande do Norte, Wallber Virgolino, ao comentar a crise que colocou em evidência o descontrole do sistema penitenciário brasileiro e as péssimas condições carcerárias, defendeu em O Globo (10/1) que “presídio não é hotel e preso não é hóspede”.

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Há alguma coisa de preocupante com um país onde “o pensamento fascista prolifera em terreno fértil”, alertou o premiado escritor brasileiro Luiz Ruffato em sua coluna no El País Brasil (11/1). “O Brasil vem se tornando dia a dia mais e mais um país fascista”, ele escreveu. “Ao invés de lutarmos pela construção de prédios escolares decentes, reivindicamos presídios; no lugar de exigirmos um sistema educacional de qualidade, pedimos mais policiamento; ao invés de ruas seguras, aspiramos condomínios invioláveis”. Ruffato se referia tanto às falas das autoridades na imprensa quanto às inúmeras opiniões proferidas por homens públicos e pessoas comuns em suas páginas nas redes sociais que incitavam ao ódio e à violência.

Para o cientista social Dominic Barter, o país parece estar vivendo sob a lógica da violência redentora e da ideia de que machucar resolve. Em resposta à Radis, que pediu que ele comentasse sobre as reações de aprovação ao massacre, o pesquisador disse que muitos aprendem a cristalizar sua ira num ódio duro e nocivo. “O ódio rotula um certo grupo de pessoas e acredita-se mais nesse rótulo do que nos fatos”, avalia. “Se acredito que há pessoas ‘do mal’ e creio que somente a pena de morte resolve, então comemoro até uma chacina, pois acredito que isso é justiça”. De acordo com Dominic, essa espécie de “saudade de respostas autoritárias” aumenta sempre que se perde a confiança na democracia.

Chacina, massacre, carnificina

Eram as primeiras horas da tarde do primeiro dia do ano quando uma rebelião no Compaj, em Manaus — um presídio administrado por uma instituição privada cujo nome, Umanizzare, quando traduzido para o português, significa humanizar —, acabou em carnificina: 56 detentos mortos e dezenas de corpos com as cabeças decepadas, além da fuga de cerca de 200 homens. Fontes oficiais declararam à imprensa tratar-se de um massacre provocado pela briga entre as facções criminosas Primeiro Comando da Capital (PCC), originária de São Paulo, e a Família do Norte, do Amazonas. Cinco dias depois, na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, em Boa Vista (RR), outros 31 presos foram mortos. Em 14/1, um novo massacre, dessa vez na maior penitenciária do Rio Grande do Norte, a de Alcaçuz, deixou um rastro de mais 26 mortos. 

Somente depois de quatro dias da chacina de Manaus, o presidente Michel Temer se posicionou publicamente sobre o assunto. Mas, além de vir com atraso, sua declaração provocou polêmica. Temer classificou a chacina — a segunda maior tragédia do sistema prisional brasileiro, ficando atrás apenas do massacre do Carandiru que, em 1992, deixou 111 presos mortos — como “um acidente pavoroso”. Para a ombudsman da Folha de S.Paulo, Paula Cesarino Costa, o comentário foi “infeliz”. Em sua coluna (8/1), a jornalista aproveitou para dar um puxão de orelhas em seu jornal que, durante a cobertura do assunto, publicou falas de autoridades “que variavam do absurdo ao constrangedor” sem que elas fossem questionadas e problematizadas — entre elas, a declaração do presidente. 

Durante uma reunião com ministros, Temer falou sobre a retomada do Plano Nacional de Segurança Pública e a construção de cinco presídios federais para abrigar “lideranças de alta periculosidade”, segundo notícia no site G1 (5/1). Apresentado pelo ministro da Justiça Alexandre de Moraes, o plano se mostra incompleto e, como apontou a página do site de análises Justificando (6/1), o que ele propõe, em meio à falência do sistema penitenciário brasileiro e a repercussão internacional das rebeliões, é apenas a “modernização” dos presídios. Estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) realizado a pedido do Uol destaca que 68 propostas são focadas na redução dos homicídios, no combate ao crime organizado e em melhorias em presídios do país. Dessas propostas, ao menos 53 (ou seja, 78% do total) já constavam de planos ou programas contra a violência lançados por outros governos desde 1995, revelou o Uol (14/1). Ainda assim, a maior parte da cobertura da mídia tradicional limitou-se a reproduzir as linhas gerais do programa. Depois de instaurada a crise, com motins e rebeliões estourando em outros presídios pelo país, foi publicado no Diário Oficial da União (18/1) um decreto presidencial autorizando o emprego das Forças Armadas durante 12 meses para a “garantia da lei e da ordem” no sistema penitenciário brasileiro.

Justiça ou barbárie

Para fugir de abordagens mais simplistas sobre o assunto, alguns jornais e sites de jornalismo independente tentaram ampliar a cobertura. O jornal digital Nexo, por exemplo, formulou perguntas (9/1) para cinco especialistas que acompanham os temas de direito penal e de direitos humanos no Brasil. Em pauta, o papel do Estado e o significado da Declaração Universal dos Direitos Humanos que, em 1948, codificou os padrões mínimos de respeito à vida e à dignidade. Ao diretor-executivo do Instituto Sou da Paz, Ivan Marques, foi dirigida uma pergunta bastante comum que reverberou em janeiro: “Por que o governo gasta tanto dinheiro mantendo presos que não contribuem com a sociedade?” A resposta de Ivan:

— Um dos grandes avanços da civilização humana foi a troca do direito de vingança pessoal — olho por olho, dente por dente, onde só o mais forte consegue impor consequência pelo dano sofrido — pelo monopólio da força pelo Estado, que é uma instituição movida pela promoção da justiça e da racionalidade. Isso significa que o valor do preso no Brasil — ou em qualquer lugar do mundo — não deve ser medido por quanto ele custa ao Estado, mas pela capacidade do Estado promover justiça, tanto em relação aos criminosos quanto às vítimas. O grande problema é que, no nosso país, há distorções nesse sistema, que impedem que o ciclo de justiça aconteça, o que gera na sociedade a sensação de impunidade: o crime na maioria das vezes compensa, e o criminoso quando é condenado pelo sistema de justiça criminal é um “custo inútil”, pois o sistema prisional, em vez de ressocializar, só abastece o crime. É por isso que corrigir essas distorções é tão necessário, até porque a outra opção é o retorno à barbárie. 

A culpa é de quem?

Em meio a dias de fúria, a Organização das Nações Unidas (ONU) se manifestou. Por meio de nota, o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) afirmou que “o sistema prisional brasileiro é ineficaz na recuperação e reinserção social de detentos, assim como contribui para o crescimento da criminalidade ao ser dominado por organizações como as que motivaram a chacina de Manaus”. Já o Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) lamentou os assassinatos e reiterou a necessidade de uma investigação “imediata, imparcial e efetiva” dos fatos. 

Na edição de janeiro de Radis (nº 172), que trouxe reportagem de capa sobre a vida de mulheres grávidas que dão à luz e amamentam nas prisões brasileiras, a advogada Luciana Simas alertava para o fato de que o país trabalha com um processo de massificação do encarceramento que produz um discurso conservador, e dizia ser urgente desconstruir tal discurso. Dominic Barter, que coordena no Brasil projetos de comunicação não-violenta e de justiça restaurativa, acrescenta que a lógica autoritária só promove o monólogo e que é preciso recuperar o diálogo. “Se não escuto, posso viver fingindo que não conheço até esquecer que conheço”, diz. “Esquecer que 40% da população prisional ainda aguarda sentença. Esquecer da imensa pressão em cima dos agentes penitenciários. Esquecer que a subida vertiginosa no número dos presos em nada tem diminuído a insegurança social e que encarceramento aumenta a probabilidade de reincidir. Esquecer das famílias que enlutam a perda de pais e irmãos e filhos assim como são esquecidas as famílias de tantos policiais mortos”.

O jornalista Jânio de Freitas também segue uma pista para entender o horror revelado pelas chacinas de janeiro. Para ele, em momentos como este, o país discute se a culpa é do Judiciário ou dos governos, dos políticos ou da legislação penal ou ainda “das garras da corrupção sobre as verbas do sistema carcerário”. Mas a resposta pode estar em sua coluna, publicada na Folha de S.Paulo (5/1), sob o título de “A indiferença é a origem do massacre em Manaus”, na qual ele apontou: “O país deveria horrorizar-se antes, em qualquer das dezenas de anos do seu conhecimento e da sua indiferença pelas condições — criminosas tanto nas leis brasileiras como nos acordos internacionais — a que os encarcerados são aqui submetidos. Não o fez jamais”.

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