Mulheres residentes em áreas segregadas economicamente, e com poucos recursos e acesso escasso a serviços de saúde, estão mais propensas a morrerem por câncer de mama. Mas esses fatores de risco podem ser mitigados com programas de transferência de renda, como o Programa Bolsa Família (PBF). Um estudo recente, publicado na revista Jama Network [1], conduzido por pesquisadoras e pesquisadores do Centro de Integração de Dados e Conhecimento para Saúde (Cidacs) da Fiocruz Bahia, avaliou mais de 20 milhões de mulheres adultas - entre 18 e 100 anos - e identificou que quanto maior o nível de segregação da área de moradia, maior o risco de morrer por câncer de mama. Ao comparar beneficiárias e não beneficiárias, mulheres que não receberam o Bolsa Família tiveram um risco de mortalidade por câncer de mama 17% maior em comparação com as beneficiárias do Programa.
O estudo mostrou que o PBF estava associado à melhoria da renda das mulheres e o acesso a serviços preventivos de câncer, levando à detecção precoce e ao tratamento
Entre as mulheres que recebiam o PBF, aquelas que viviam em municípios com alta segregação de renda tinham um risco 13% maior de morrer por câncer de mama em comparação com aquelas que viviam em municípios com baixa segregação. Já entre aquelas que não recebiam o Programa, as que viviam em municípios com alta segregação tiveram um risco 24% maior de morrer de câncer de mama, comparado com as que viviam em municípios com baixa segregação.
O estudo ainda reforça o resultado de pesquisa anterior, também realizada por pesquisadoras do Cidacs/Fiocruz Bahia, em que mulheres pretas tiveram um risco 10% maior de morrer da doença, em comparação com brancas [2]. Essa avaliação anterior também levou em consideração mulheres registradas no Cadastro Único (CadÚnico), ou seja, que fazem parte de famílias pobres ou extremamente pobres.
Para a pesquisadora Joanna Guimarães, associada ao Cidacs/Fiocruz Bahia, boa parte dos estudos sobre os efeitos do PBF têm foco na saúde infantil e doenças infecciosas, como hanseníase e tuberculose, e a saúde da mulher é menos explorada. “Este foi o primeiro estudo que investigou a associação entre o PBF e mortalidade por câncer de mama, que é o tipo de câncer que mais mata mulheres no Brasil e no mundo”, afirma a pesquisadora.
A incidência de mortalidade por câncer de mama em municípios com baixa segregação foi de 6,4 mulheres a cada 100 mil habitantes. Em municípios com média segregação, a incidência de mortalidade foi de 6,7, enquanto nos municípios com alta segregação de renda, essa taxa chega a ser de 8,2 óbitos a cada 100 mil.
“O estudo também mostra a importância do local de moradia das pessoas como um determinante das desigualdades na mortalidade por este tipo de câncer (para além dos fatores de risco individuais tradicionais como dieta, fumo e outros comportamentos de saúde), e como o PBF ajudou a proteger as mulheres dos efeitos negativos de viver em áreas mais pobres”, explica Joanna.
Dentre as 21.680.930 mulheres estudadas, 11.549.000 (53,3%) eram pardas, 7.110.375 (32,8%) eram brancas, 1.772.843 (8,2%) eram pretas, 104.252 (0,5%) eram indígenas e 96.085 (0,4%) eram asiáticas. Dessas, havia 7.227.998 mulheres em municípios com baixa segregação, 7.309.565 mulheres em municípios com média segregação e 7.143.367 mulheres vivendo em municípios com alta segregação.
Segregação e o processo saúde-doença
Pessoas com renda mais baixa e residentes de locais com acentuadas desigualdades estão sujeitas a fatores estruturais e ambientais que moldam o comportamento e as condições de vida. “A pesquisa mostrou o resultado de uma política pública, o Bolsa Família, na redução das desigualdades na mortalidade por câncer de mama em mulheres. Isso se deve possivelmente ao aumento da renda familiar e com isso maior acesso a medicamentos, alimentação de qualidade e acesso a serviços de transporte, permitindo a busca por serviços preventivos de câncer, como a realização de mamografia, em outros locais”, afirma Joanna.
Para os pesquisadores, amparados em estudos anteriores, as evidências também mostram que viver em áreas economicamente desfavorecidas está associado a um acesso mais limitado de serviços de rastreamento e cuidado, bem como a resultados desfavoráveis no câncer de mama. Entre eles, diagnóstico em estágio avançado, tratamento menos adequado, menor sobrevida e maior taxa de mortalidade.
Segundo o estudo, a segregação de renda, também chamada de segregação residencial por renda, é a separação sistemática de indivíduos em diferentes áreas geográficas, em que políticas habitacionais discriminatórias, historicamente, marginalizam pessoas com renda mais baixa. A investigação ainda apontou que a segregação de renda, mesmo entre as mulheres que recebiam o Bolsa Família, foi associada a um aumento no risco de mortalidade por câncer de mama para aquelas que receberam o benefício por menos tempo – até quatro anos.
Melhorias
O estudo conduzido por pesquisadoras do Cidacs/Fiocruz Bahia descobriu que o PBF estava associado à redução na mortalidade por câncer de mama. Essa associação provavelmente se deve à melhoria da renda das mulheres e o acesso a serviços preventivos de câncer, levando à detecção precoce e ao tratamento e, em última instância, à redução da mortalidade.
“As condicionalidades do PBF impõem uma maior utilização dos serviços de saúde, aumentando a detecção precoce e tratamento oportuno, potencialmente reduzindo a mortalidade. O estudo tem implicações políticas, pois sugere a inclusão do rastreamento e exame clínico das mamas entre as condicionalidades do PBF”, sugere Joanna.
O estudo foi realizado a partir de uma colaboração entre pesquisadores do Cidacs/Fiocruz Bahia, da Faculdade de Epidemiologia e Saúde da População da London School of Hygiene and Tropical Medicine, do Ubuntu Center on Racism, Global Movements and Population Health Equity da Universidade Drexel, do Centro de Diabetes e Endocrinologia da Bahia da Secretaria de Saúde do Estado da Bahia e do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia. Para o estudo foram utilizados dados da Coorte dos 100 milhões de brasileiros, uma coorte populacional, montada pelo Cidacs/Fiocruz Bahia, a partir do Cadastro Único do governo federal, que inclui os dados de mais de 114 milhões de brasileiros com baixa renda (quase 55% da população do país) no período de 2001 a 2015.
O que sugerem os resultados
• As evidências do estudo demonstram que a associação entre segregação e mortes por câncer de mama foi diferente para mulheres que receberam e não receberam o Bolsa Família.
• Os resultados apontam que mulheres que viviam em municípios com alta segregação de renda eram mais propensas a serem mais velhas, indígenas ou negras, com um nível de educação mais elevado, e menos propensas a serem beneficiárias do Bolsa Família em comparação com aquelas que viviam em municípios com média ou baixa segregação.
• Os municípios com maior segregação de renda eram maiores, tinham maior densidade populacional e tinham uma proporção maior de mulheres residentes em áreas urbanas do que municípios com menor segregação de renda.
• Ao comparar mulheres que receberam o Bolsa Família com aquelas que não receberam, as não beneficiárias eram mais propensas a serem brancas, mais velhas e mais educadas, e tendiam a viver em municípios mais urbanos e segregados do que as beneficiárias do Bolsa Família.
• A estratificação pelo tempo em anos de recebimento do benefício do PBF demonstrou que a segregação de renda estava associada à mortalidade apenas entre as mulheres que recebiam o benefício por menos tempo.