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Saúde e Natureza é tema do quarto seminário realizado pela Fiocruz e o CES/Coimbra 


04/04/2023

VPAAPS/Fiocruz

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No dia 29 de março, foi realizado o seminário “Aportes teóricos ao estudo do ecocídio e da globalização dos territórios III: saúde e natureza”. O evento desenvolvido no âmbito da pesquisa “Ecocídio e Globalização dos Cerrados Brasileiros: resistências e lutas dos povos e comunidades originários e tradicionais pelos direitos à saúde e à vida” foi realizado pela Fiocruz e o Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra. 

Em sua fala de abertura, o coordenador da pesquisa e investigador visitante do CES, Guilherme Franco Netto, que também coordena o Programa de Saúde, Ambiente e Sustentabilidade da Vice-Presidência de Ambiente, Atenção e Promoção da Saúde (VPAAPS/Fiocruz), explicou que esse é o quarto evento do ciclo de seminários e corresponde a parte da primeira etapa do estudo. O projeto tem sido elaborado por várias mãos e está baseado nas evidências identificadas em 15 comunidades - que vivem em oito dos 11 estados abrangidos pelo Cerrado -, nas quais o ecocídio foi denunciado pela Campanha Nacional em Defesa do Cerrado ao Tribunal Permanente dos Povos (TPP). 

A coordenadora-geral de Gestão do Conhecimento, da Informação, da Avaliação e do Monitoramento da Saúde Indígena do Ministério da Saúde, Giovana Mandulão, de origem da etnia Macuxi, falou da atual conjuntura política do país e da esperança de novos tempos. “Estamos vivendo um momento histórico conquistado com muita luta e resistência pelos povos indígenas. Temos o Ministério dos Povos Indígenas, o qual é chefiado por uma mulher indígena. Temos também uma mulher indígena na presidência da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e um indígena à frente da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai)”, destacou.

Para a coordenadora, esses espaços conquistados dão voz e visibilidade as causas e as lutas indígenas, porém não garantem o cumprimento das demandas e esse é o maior desafio. “Estamos esperançosos com a atual conjuntura política e a oportunidade de mudar essa realidade, garantindo de fato os nossos direitos estabelecidos pela Constituição Federal de 1988”, afirmou. 

Mandulão também defendeu a preservação dos biomas do planeta e a demarcação dos territórios indígenas para evitar o ecocídio. “Importante garantir os nossos direitos territoriais e garantir a existência dos povos. Sem a terra não há saúde, educação, cultura, alimento tradicional, direitos sociais. Não há vida!”, completou.

A médica e pesquisadora da Universidade Federal do Ceará (UFCE), Raquel Rigotto, apresentou dados impactantes que qualificam o Cerrado como uma zona de sacrifício do agronegócio brasileiro. “Trata-se de informações e reflexões colhidas a partir do acompanhamento do trabalho de construção do Tribunal dos Povos do Cerrado desde 2019, num diálogo com outros pesquisadores e pesquisadoras, organizações sociais, com movimentos sociais, com a fantástica equipe da campanha do cerrado e em especial com lideranças e territórios de vida no Cerrado”, pontuou. 

Rigotto também ressaltou que o Cerrado, em 2018, já tinha quase 47 milhões de hectares desmatados e ocupados para a produção de soja, cana, milho e algodão, o que corresponde a 75% das terras dedicadas à produção de commodities no Brasil. No mesmo ano, disse, 64 milhões de hectares destinados a pastagem, na qual abrigava 117 milhões de cabeças de gado, representando 55% de todo o  rebanho bovino no Brasil. “Somando tudo, temos mais de 110 milhões de hectares de terras do bioma destruídos, invadidos pelo agronegócio”, destacou.

O uso dos agrotóxicos foi outro ponto destacado por Rigotto. São 602.303.236 de litros de agrotóxicos utilizados em 2018, nos cultivos de soja, cana-de-açúcar, milho e algodão, concentrando 73,5% do total de agrotóxicos consumidos no país. Quanto aos estudos epidemiológicos no Cerrado, Rigotto informou que nas regiões de maior produção agrícola dos estados brasileiros (MT, MS, GO, PR, RS, SP e TO), das culturas somadas de soja, milho, cana, algodão, arroz, feijão, fumo e café, existe uma correlação positiva entre os volumes de agrotóxicos usados nessas lavouras e as incidências de: intoxicações agudas; mortes por intoxicações, cânceres infantojuvenis, malformações fetais; abortos; e suicídios.

Conforme apresentado pela pesquisadora, a agricultura irrigada do agronegócio brasileiro consome alto volume de água no Brasil. São cerca de 941 mil litros de água por segundo em 2019, o que corresponde a 29,7 trilhões de litros ao ano. 
“No contexto das mudanças climáticas, em que a escassez hídrica é uma das principais ameaças, é muito importante ter ideia sobre o uso que o agronegócio faz do solo, o impacto disso para a natureza e para os povos e para toda a humanidade. Mais do que dados numéricos, são processos ecológicos construídos ao longo de milhões e milhões de anos” , afirmou. Ao finalizar a fala, a pesquisadora ressaltou a potência do projeto de pesquisa realizado pela Fiocruz e o CES na perspectiva da “descolonização do ser e do saber e do trazer para a saúde coletiva o sentimento de indignação ao compreender a profundidade da violência e dos crimes que estão sendo cometidos”.

Durante o seminário, o impacto dos agrotóxicos nos territórios e nos modos de vida dos povos cerratenses também foi abordado pela raizeira e integrante da Articulação Pacari, que faz parte da Campanha Nacional em Defesa do Cerrado, Lourdes Laureano. “Nossas comunidades viraram ilhas rodeadas por agrotóxicos. As raizeiras precisam caminhar muito para encontrar as plantas para cuidar das pessoas”, diz a raizeira ao ressaltar a dificuldade no acesso às plantas devido a destruição de ecossistemas e a perda de biodiversidade proporcionada pela ocupação do Cerrado em prol do agronegócio. 

Os conhecimentos tradicionais dos povos originários e comunidades tradicionais são importantes para preservação da biodiversidade cerratense. As raizeiras, por exemplo, praticam o uso sustentável do Cerrado por meio da identificação das plantas medicinais que são utilizadas para tratamento de doenças. “A relação com a natureza passa pelos conhecimentos tradicionais. A prática da medicina tradicional está sendo ameaçada”, denuncia.

Segundo Laureano, a perda da paisagem natural no território, com a invasão e o desmatamento, tem afetado a saúde das pessoas. “As principais queixas relatadas são decorrentes da dengue, chicungunha, gripe, ansiedade, estresse, entre outras”, afirma. Além disso, o barulho das ferrovias, que atravessam o território, também tem causado prejuízos para as populações que vão desde rachaduras nas casas até problemas de saúde como, por exemplo, a insônia e o estresse.

O cineasta indígena e biólogo Marcelo Tingüi-Botó considera que todo território é medicinal. “Existem plantas que utilizamos nos nossos rituais e muitas vezes essas plantas estão contaminadas com veneno. Queremos dignidade para viver nos nossos territórios. Nosso modo de vivência está constantemente ameaçado”, revela.

Tingüi-Botó conta que que vive em Alagoas, com cerca de 350 a 400 indígenas numa terra de 600 ha que foi homologada. “Para nós há diferença entre terra e o território. Nós enxergamos o território como um sujeito de direito e quando a gente fala da saúde coletiva e a saúde do território, a gente não só se refere aos povos (seres humanos), mas também às plantas, aos animais, aos insetos, tudo que faz parte de uma só energia, de uma só cosmologia. O riacho tem o direito de correr mais para a esquerda ou para a direita, uma árvore engrossa mais do que a outra, o arbusto tem mais espinho do que o outro e é um direito da planta e do animal ser como queiram”, defende. 

Tingüi-Botó também ressaltou a iniciativa da pesquisa em utilizar uma metodologia colaborativa e não extrativista, de pensar com os povos. “A chegada das ciências hegemônicas nesse continente trouxe certas ciências e tecnologia que avançaram em partes. A proposta de apagamento dessas ciências desses povos tradicionais é que o Boaventura de Sousa Santos se refere à epistemicídio”, afirmou. 

Para ele, não dá para falar de ecocídio e epistemicídio sem se falar de genocídio, não dá para falar dos povos tradicionais sem falar da sua história, da evasão do mundo velho para esse mundo e as mazelas que trouxeram.  “Porém, não é tempo de pensarmos apenas no que passou, precisamos lembrar de todo o processo que afeta os povos tradicionais desde a colonização, a ditadura militar, o cangaço, e que sempre provocou sofrimento e diversos ataques nesses territórios, mas a gente segue com o pertencimento do território e a gente segue com respeito e dignidade ao planeta que é a nossa casa”, destacou.

De acordo com o professor do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, João Arriscado, as zonas de sacrifício citadas por Rigotto, também são chamadas de “zona de não ser” ou como o professor Boaventura de Sousa Santos as denominam de “zonas de segregação colonial”. “Nestas zonas reinam a violência, às práticas de expropriação, de apropriação e de destruição dos modos de vida”, aponta Arriscado. 

Na visão dos colonizadores europeus do século XVII, segundo Arriscado, para colonizar  os territórios era preciso desplantar, o que significa destruir aquilo que existia nos territórios e permitia sua tomada. “Por isso esse processo de colonização foi sempre um processo que associou formas de eliminação de populações, o genocídio, e de eliminação de territórios, a destruição de territórios, o que chamamos hoje de ecocídio”, ressaltou.

O professor do Departamento de Ciências Sociais da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp) e integrante da Estratégia Fiocruz para a Agenda 2030 (EFA 2030), Marcelo Rasga Moreira, pontuou sobre o direito à propriedade. De um lado está o direito de propriedade ao particular e, de outro, o direito ao meio ambiente equilibrado. Na avaliação dele, o tema da propriedade privada deve ser abordado na pesquisa. 

“O nosso problema aqui é de propriedade privada. Tudo que falamos sobre o agronegócio, o agrohidronegócio está a utilização da natureza para a produção de lucros por determinados setores empresariais. Como é que a gente combate a propriedade privada se esse direito está consagrado na nossa Constituição? As nossas discussões feitas, até o momento, passam pelo campo da justiça, pelo campo do direito, da ética, da política, mas não aborda o econômico. Como desenvolvemos essa discussão?”, indaga. 

O próximo seminário será realizado no dia 10 de maio (quarta-feira), das 10h às 13h, com o tema: Técnicas e Métodos que Promovem o Protagonismo dos Sujeitos de Pesquisa

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