13/07/2020
Por: Cristiane Albuquerque (COC/Fiocruz)
“Radical”, “extravagante” e “excêntrica”. Uma geração de mulheres adentrou as primeiras décadas do século 20 disposta a romper com o padrão feminino tradicional da época. Ao fazê-lo, as chamadas modernistas ditaram comportamentos inaceitáveis até então. Condutas como viajar sozinha, separar-se do marido, frequentar bares ou mesmo praticar esportes eram vistas como sinais de descontrole e, em alguns casos, assemelhavam-se aos sintomas apresentados por mulheres interditadas em hospícios.
O limite entre o que era tolerado, mesmo que classificado como excêntrico, e o estigma da loucura ao qual estavam submetidas muitas mulheres que extrapolavam o perfil ideal de ‘mãe e esposa’ foi estabelecido capacidade de articulação das modernistas – inspiradas em artistas de vanguarda e mulheres da elite intelectual local – e pela na divergência entre os discursos médicos mentais e morais. Elas conseguiram manter-se em espaços sociais de prestígio e tornaram-se respeitadas, o que lhes conferiu relativo status e fez com que seus ideais ganhassem destaque nas páginas das revistas de variedade da época e abrisse espaço para essa nova categoria para mulheres: modernistas ou ultramodernas.
A constatação é de um estudo conduzido pelas pesquisadoras da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) Cristiana Facchinetti e Carolina Carvalho, que destaca o papel das “modernistas”, uma das muitas categorias construídas no contexto da redefinição dos papéis sociais femininos que oscilavam entre representações de vanguarda e patologia. Elas assinam o artigo Loucas ou modernas? Mulheres em revista (1920-1940), publicado na Revista Cadernos Pagu, resultante da análise de periódicos especializados, como o Boletim de Eugenia, além das revistas de variedades Jornal das Moças, A Cigarra e Vamos Ler!.
No início do século 20, o Rio de Janeiro configurou-se com um dos principais espaços urbanos do projeto civilizatório brasileiro. Com base no modelo das cidades europeias, a então capital federal ditava valores e modos de vida que disputavam com os moldes tradicionais a orientação de novos hábitos sociais. Foi no contexto da modernização que a figura das modernistas ganhou espaço no cenário carioca.
Diferentemente das mulheres modernas ‘normais’, que confrontaram o casamento e a maternidade como o lugar social naturalmente atribuído ao sexo feminino e conquistaram o direito de trabalhar fora e estudar, desde que conseguissem conciliar casamento e mercado de trabalho, ser modernista significava buscar emancipação feminina. Como afirmavam na época, essas mulheres eram tudo, “menos boas donas de casa”.
“Para essas mulheres, a conquista de espaço no mercado de trabalho era pouco, elas queriam ir além. Ser modernista, portanto, era uma insistência em manter certas “ultramodernices”, o que significava independência, autossuficiência e possuir os mesmos direitos que os homens”, explica a historiadora Carolina Carvalho, coautora do estudo com a psicanalista Cristiana Facchinetti, que é pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) e professora do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde (PPGHCS).
“A mulher ‘modernista’ surgiu como uma nova representação feminina, ora mobilizada como anormal – por quem considerava que a mulher deveria continuar a exercer apenas as funções de mãe e esposa –, ora exaltada como aquela mulher dona de si, consciente de seus direitos e em busca de novos modos de ser e viver para além daqueles até então consentidos, como a maternidade e o casamento”, observa Carvalho.
O comportamento liberal das modernistas, pautado em referências de artistas de vanguarda e membros da elite a quem tudo parecida permitido, contrastava com o padrão da mulher moderna ‘normal’, em que a discrição e a conduta eram alinhadas às regras aceitáveis na esfera social. Seja por suas ocupações no trabalho externo, nos encontros sociais em cafés, bailes e recitais de poesia ou nos novos espaços de entretenimento, como cinemas, as modernistas participavam ativamente da vida pública, apontando para uma ruptura de normas e convenções.
Igualdade entre os sexos: limite entre “modernidade” e “degeneração”
Na revista A Cigarra, o público leitor masculino mostrava-se insatisfeito com o comportamento modernista e defendia que essas mulheres negavam “sua grande missão na Terra: a maternidade”, mostra o estudo. Para os médicos das revistas especializadas, às tendências chamadas “modernistas” eram um perigo para a mentalidade feminina brasileira, já que os ideais eram capazes de levar as mulheres à loucura, na avaliação deles.
“Na visão de médicos dos periódicos especializados, de alguns conselheiros das revistas e até mesmo de leitoras e leitores mais conservadores, havia um ponto de conflito constante: a da igualdade entre os sexos. Para esse pensamento conservador, a busca por igualdade de direitos com os homens era o limite das fronteiras entre ser moderna e ser degenerada, já que ultrapassavam a ordem natural dos sexos”, destacou Facchinetti.
Nas páginas das revistas de variedade, a preocupação com o corpo e a aparência feminina, pautados nas tendências de moda europeia, e a propaganda de hábitos saudáveis, como alimentação e ginástica, ganhavam cada vez mais destaque. Ser moderna e emancipada incluía, a partir de então, estar bem vestida, trabalhar fora, cuidar do corpo e ter o dinamismo adequado ao novo estilo de vida.
Ainda que o casamento continuasse a ser o plano mais importante para uma parcela significativa do público feminino, o trabalho é indicado como uma solução moderna para as mulheres, e a vida fora do lar já era vista como uma realidade, como mostra a capa da revista Vamos Ler!: “A mulher de hoje também trabalha”. Para uma leitora de da mesma revista, no entanto, as mulheres sabiam que nasceram para serem “antes de tudo esposa e mãe adorada”. Segundo ela, “a igualdade não deve[ria] existir”.
“As seções de correspondência das revistas de variedade revelaram a diversidade de opiniões das próprias mulheres sobre a emancipação feminina. Algumas leitoras eram absolutamente contrárias à igualdade de direitos, enquanto outras reivindicavam a importância dessas conquistas para alcançarem novos espaços sociais fora do casamento”, revelou Facchinetti.
O artigo demonstrar, ainda, na voz das próprias leitoras e colunistas de revistas que o esfera que havia construído a categoria segura de normalidade para as mulheres, oscilava. “Os questionamentos das modernistas abriram caminho para uma série de conquistas como o voto feminino, o trabalho externo e carreiras acadêmicas para mulheres, assim como a possibilidade de uma vida social que incluía divertimentos da vida moderna. No entanto, ainda, mantinha a díade marido e filhos como essencial para a natureza feminina para tantas outras mulheres”, explicou Facchinetti.
A conjuntura de emancipação feminina avançava, ainda que os modelos tradicionais de mulher não tenham deixado de existir. Foi na década de 1940, no entanto, que as pautas modernistas avançaram nas revistas de variedade, que destacavam os avanços quanto à escolaridade feminina, vista, a partir de então, como uma exigência do mundo moderno. A revista Vamos Ler! inaugurou um espaço dedicado à questão da emancipação feminina. A seção “Os homens são assim...” contribuía para o debate, estimulando as leitoras a avaliarem, criticarem e darem sugestões sobre o sexo oposto.
“Ao dar voz às próprias mulheres, as revistas compartilhavam as experiências individuais e afetivas delas. As seções de aconselhamento, que antes orientavam sobre os limites da emancipação política e econômica ou comportamentos ideais para que não fossem tachadas de levianas ou namoradeiras, foram capazes de apresentar como possibilidade diferentes modelos de feminilidade, mesmo aqueles mais marginais, como o das mulheres ‘modernistas’ ou ‘masculinizadas’”, ressalta Carvalho.
De acordo com Facchinetti, a contraposição de conservadores às pautas femininas modernas fomentava ainda mais o discurso de que as mulheres não se deixavam dominar na luta por seus direitos. “As revistas de variedade contribuíram para reforçar os comportamentos modernistas e a busca feminina por direitos, igualdade política, econômica e condições de trabalho, principalmente as seções de correspondências com os leitores, em que as mulheres tinham a oportunidade de se posicionar sobre essas questões”, ressaltou a autora.
Rebeldia e transgressão feminina
Ao longo do século 19, o olhar médico sobre o sexo naturalizou o destino social dos indivíduos, determinando características consideradas normais para ambos os sexos: o modelo de saúde masculina relacionava-se ao homem provedor do lar, trabalhador e bom pai de família, e a normalidade para as mulheres estava ligada ao casamento, à maternidade e aos cuidados com a casa, o marido e os filhos.
A rivalidade entre os sexos era o maior risco da emancipação feminina, de acordo com conservadores e religiosos. Eles defendiam que, ao buscar ocupar espaços que não eram seus, as mulheres contribuíam para o fim dos casamentos, pois a crescente presença feminina no mercado de trabalho levaria ao desemprego em massa dos homens e, assim, estes não teriam condições de desempenhar a função do provedor pai de família.
As transgressões do papel tradicional feminino eram caracterizadas como desequilíbrio nervoso e mental, consequência da inversão de papel: em vez de passivas, as mulheres almejavam igualar-se aos homens. Excesso de leitura e instrução em demasia, busca por ocupações à margem da natureza feminina e o uso de roupas masculinas eram, segundo os periódicos científicos, fatores que contribuíam para o adoecimento.
“O desvio – a falta de desejo de se casar ou ter filhos – era considerado uma anormalidade, um movimento contrário à natureza feminina e, portanto, marca da degeneração, podendo levar à loucura. No entanto, mesmo quem era a favor da emancipação ressaltava a capacidade feminina de conciliar família e carreira, e a abdicação da maternidade sequer era cogitada.”, destacou Facchinetti.
Perfil da mulher moderna ‘normal’
O perfil de mulher normal, no entanto, começou a ganhar novas configurações nas primeiras décadas do século 20 e os ‘desvios’ de comportamento feminino eram cada vez mais comuns, já que representavam um número significativo de mulheres, sobretudo nas metrópoles. A capa do Jornal das Moças de 14 de abril de 1932 retrata a mudança de perfil e destaca uma mulher dirigindo um carro.
Embora muitos médicos acreditassem que a “familiaridade com as ruas” pudesse causar danos à saúde mental e física das mulheres, houve uma mudança de posição com o passar do tempo, mais favorável à admissão do trabalho feminino. Entretanto, assim como havia mulheres que eram contra os movimentos feministas, as vozes médicas também não eram unânimes.
Em sua maioria, os médicos pregavam que as funções exercidas fora do lar jamais poderiam comprometer o exercício da maternidade ou o cumprimento das tarefas domésticas. Qualquer atividade fora desses critérios deveria ser investigada como possível sintoma de anormalidade. Reforçando essa ideia, uma colunista da revista Vamos Ler! defendia que o trabalho não era impedimento para se possuir um “lar perfeitamente dentro dos padrões da sociedade atual e do código civil”.
“Até mesmos para os médicos que reconheciam a capacidade das mulheres para a realização desse tipo de trabalho, o casamento e a maternidade continuavam a se constituir como centrais para garantir a sua sanidade”, concluiu Facchinetti.
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