25/10/2022
VPAAPS/OTSS/FMA
Fiocruz, Embrapa, Articulação Nacional de Agroecologia, entre outras organizações parceiras, estão à frente da iniciativa que envolve 38 comunidades e mais de 700 pessoas
Uma floresta abraçava os cerca de 20 participantes que visitavam o quintal socioprodutivo da dona Leda Monteiro, na Praia da Brisa, em Sepetiba, Zona Oeste do Rio de Janeiro. A anfitriã é capixaba, mas se tornou referência para a agroecologia carioca quando se mudou com o marido na década de 70, e “na cara e coragem”, como ela diz, transformou um quintal de saibro, “um aterro bem pobre, com muita pedra”, em um ambiente de diversidade que promove saúde para ela e quem está no entorno.
Vestida com “maior orgulho da blusinha que foi a primeira da caminhada”, dona Leda contou sobre sua trajetória com as plantas medicinais - tratadas por ela como filhas-, e com a agricultura em quintais, com o apoio de organizações como a AS-PTA - Agricultura Familiar e Agroecologia, Fundação Angélica Goulart e a Pastoral da Criança. “Você começa a ver que pode ter ao alcance da mão o que precisa. É muito diferente do que comprar pacotinho. Nada contra quem não possa plantar ou quem não goste de plantar e compre pacotinho, mas é diferente. Não é o mesmo sabor. Tudo o que eu preciso de básico eu tenho aqui: ora pro nobis, taioba, chaya, nirá… Não fui acostumada com remédio de farmácia, alopático, sempre fui acostumada com os fitoterápicos e resgatei isso. Moro no Rio de Janeiro como se não morasse, como se morasse numa rocinha, e me sinto muito bem no meu quintal”, disse emocionada.
Dona Leda Monteiro, referência para a agricultura urbana agroecológica no Rio de Janeiro. Foto Angélica Almeida
Não muito longe dali e também como um dos feitios da dona Leda e de outras lideranças, a Horta Comunitária da Brisa anunciou aos visitantes a potência do trabalho coletivo para o abastecimento das famílias com comida de verdade. “Isso aqui é um paraíso. Essa horta tem muita história, uma verdadeira terapia. Eu chamo de ‘psicologia verde’ porque a gente já teve pessoas que foram viciadas em drogas e se libertaram trabalhando aqui, pessoas que estavam com depressão… Porque mexer com a terra é terapia, é vida”, relatou com brilho nos olhos Maria dos Santos.
O entusiasmo, entretanto, não é sinônimo de falta de desafios. Revela, antes, a teimosia de uma agricultura que resiste há mais de 20 anos, e já precisou recomeçar diante da doença de carrapato espalhada por cavalos que invadiram o local; diante da soltura de bois que danificaram toda uma produção; e também diante do poder da milícia, que assedia moradores e limita a expansão dos cultivos de alimentos e plantas medicinais. Frente a tudo isso e com apoio imprescindível de organizações sociais, abelhas nativas polinizam o quintal, tecnologias sociais de saneamento como o banheiro seco são implantadas, e uma multiplicidade de espécies transformam a paisagem.
As vivências acima são só dois exemplos entre dezenas de experiências de agroecologia visitadas durante o II Encontro Ampliado do Colegiado do Projeto Ará, realizado entre os dias 13 e 15 de outubro no campus Fiocruz Mata Atlântica. Estratégia metodológica do evento, os intercâmbios possibilitaram que as cerca de 70 pessoas participantes também entrassem em contato com a concretude da agricultura no Quilombo do Camorim, nos Quintais Socioprodutivos da Colônia e na Agroprata, em Campo Grande.
Como contextualiza Alexandre Botelho (Merrem), educador popular que esteve à frente da facilitação do Encontro, esse jeito de fazer que prioriza o mergulho na realidade buscou o “despertar das pessoas de que o que se vive em um território, de maneira singular, tem a ver com o que se vive em outros territórios”, a fim de tecer uma compreensão mais ampliada do projeto, que é construído em três locais distintos, mas que tem uma unidade metodológica e de ação.
Formalizada enquanto "Desenvolvimento Sustentável e Promoção da Saúde em populações vulnerabilizadas de agricultura familiar e de povos e comunidades tradicionais rurais e urbanas no contexto da Covid-19”, e batizada de Ará no primeiro encontro ampliado em Ubatuba, a iniciativa é coordenada pela Vice-Presidência de Ambiente, Atenção e Promoção da Saúde (VPAAPS) da Fiocruz e realizada de forma integrada com três programas territoriais: a Fiocruz Mata Atlântica (Zona Oeste do RJ), o Fórum Itaboraí (Petrópolis) e o Observatório de Territórios Sustentáveis e Saudáveis da Bocaina (Paraty/Angra/Ubatuba), fruto da parceria entre a Fiocruz e o Fórum de Comunidades Tradicionais (FCT). Também conta com a participação da Embrapa, da Articulação Nacional de Agroecologia, entre diversos parceiros locais.
Foto Lin Lima
Avançar no planejamento de ações coletivas que articulem a incorporação de tecnologias sociais com geração de trabalho e renda, inclusão social, organização comunitária e segurança alimentar e nutricional são alguns dos objetivos do projeto. “Uma grande rede de redes comprometida com a redemocratização dos sistemas alimentares, a luta contra a fome no nosso país, que passa pelo turismo de base comunitária, que passa pela pesca artesanal…”, sintetiza André Burigo, da Agenda de Saúde e Agroecologia da área de Ambiente da VPAAPS.
Desafios e perspectivas desde os territórios
Além das vivências, o encontro contou com apresentação da trajetória histórica da atuação dos programas territoriais da Fiocruz na promoção da saúde e o fortalecimento da agroecologia e das atividades de integração do Ará, por meio de instalações artístico-pedagógicas - recursos de expressão criativa que contribuíram para que o diálogo acontecesse em diversos formatos e acionando diferentes sentidos.
Tecnologia social Alagados Construídos para tratamento descentralizado de esgotos nas moradias que não têm acesso a saneamento básico, apresentada durante instalação da Fiocruz Mata Atlântica - Foto Lin Lima
À luz da realidade de cada lugar e lançando mão de pesquisas e dados sobre o cenário nacional, o grupo também refletiu sobre “Democracia, fome e segurança alimentar e nutricional”, em uma roda de conversa que convergiu o olhar de agricultoras/es, quilombolas, caiçaras, indígenas, pesquisadoras/es e equipes técnicas participantes.
O aumento da fome e da insegurança alimentar nos territórios, o empobrecimento e desemprego das famílias, os desastres socioambientais, a pressão da especulação imobiliária e a violência das milícias foram algumas das denúncias compartilhadas. “A gente já perdeu espaço de canteiro, não conseguiu expandir a produção porque eles roubam a nossa água, desviam para suprir a demanda de lava jato clandestino. Infelizmente, hoje a gente não pode colocar uma barraca na calçada porque eles cobram de todo mundo que coloca comércio, então não consegue expandir nossas vendas. A gente tem medo de abrir nossas portas, com medo de que eles cobrem, de que invadam, de que queiram tomar”, relatou uma participante.
Na ocasião, a pesquisadora e professora de Ciências Sociais CPDA/UFRRJ Claudia Schmitt apresentou o resultado de um estudo elaborado com a Articulação Nacional de Agroecologia sobre o desmonte de políticas e instrumentos de políticas públicas e retrocessos em direitos, como à terra e ao território, à segurança alimentar - com a fragilização de importantes políticas como o Programa Nacional de Alimentação Escolar, que privilegia a compra de alimentos saudáveis vindos da agricultura familiar e melhora significativamente a alimentação oferecida nas escolas -, bem como sobre a fragilização da própria capacidade institucional do Estado, a partir da desestruturação de instituições públicas.
Por outro lado, a pesquisadora destacou as estratégias de resistência das organizações sociais e as experiências que o Ará tem construído e que foram trazidas na roda de conversa, a exemplo das campanhas de solidariedade, com compra e distribuição de cestas agroecológicas, o incentivo à produção, beneficiamento e comercialização de alimentos saudáveis, o resgate de práticas tradicionais ligadas à pesca artesanal e à agroecologia, a retomada de casas de farinhas e sistemas agroflorestais nas roças, a troca entre juventudes e mulheres de outros territórios, os processos de formação compartilhados.
É preciso equilibrar a leitura dos retrocessos e desmontes com a capacidade de também olhar para a história potente de resistência que a sociedade brasileira vem escrevendo, destacou Claudia Schmitt. Foto Angélica Almeida
“Essa rede de elos, de laços, de relações virtuosas nos dá mais margem para agir. É fundamental para a construção de alternativas no plano local e supralocal”, afirmou Claudia. Ela destacou que, em um momento de homogeneização e apagamento da história, é importantíssimo que cada território compartilhe suas memórias e aprendizados, bem como contribua para o avanço da agroecologia, articulando tecnologias sociais com o processo de mobilização de territórios. “Nenhuma tecnologia vai resolver nem pontualmente nem em maior tempo um conjunto de questões que são muito mais complexas, mas uma teia de organizações acompanhada de uma teia de práticas e tecnologias abre um caminho que já está sendo exercitado em ritmos e volumes diversificados nos territórios. Esse desenho que combina ação local, o reconhecimento contextual e específico de cada lugar e amplifica isso numa roda maior, é fundamental.”, avaliou.
O assessor especial da VPAAPS, Hermano Castro, reafirmou o compromisso da Fundação Oswaldo Cruz, enquanto uma instituição de Estado, de construir a cidadania no Brasil: “Quando a gente fala de combater a fome, nós estamos falando primeiro de liberdade e democracia. É o primeiro passo para uma vida digna neste país. A Fiocruz tem essa missão e vai estar junto dos povos tradicionais enfrentando este momento difícil e construindo o passo seguinte, onde a gente possa efetivamente ter reforma agrária, plantar dignamente, ter comida na mesa, respirar um ar limpo, sem queimada, sem destruição ambiental”, reforçou.
A programação do encontro ainda foi composta por feira e exposição de produtos agroecológicos, ciranda para as crianças e atividades culturais, como a exibição de filmes e roda de samba regida por um grupo apenas de mulheres. A alimentação saudável foi providenciada por culinaristas do próprio território, gerando renda, em sua maioria, para agricultoras e agricultores agroecológicos da região metropolitana do RJ.
O próximo Encontro Ampliado do Colegiado está previsto para acontecer entre maio e junho de 2023 no território de Petrópolis, com a liderança do Fórum Itaboraí: “O projeto assume a importância de tirar as comunidades do isolamento, fortalecendo a organização dentro do próprio território e possibilitando o protagonismo de representantes locais em intensa interação, pactuação e alinhamento com as equipes dos projetos das equipes territoriais da Fiocruz e seus parceiros”, conclui Claudemar Mattos, da Agenda de Saúde Agroecologia.
Ará da serra ao mar, saúde e agroecologia não podem faltar. Foto Lin Lima
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