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A pesquisadora Elaine Nascimento inaugura a série Cientistas da Fiocruz Nordeste


11/01/2021

Simone Kabarite

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Mulher cis, negra, lésbica, nascida no Complexo do Alemão, conjunto de favelas localizado na Zona Norte do Rio de Janeiro, de parto natural em casa. Assim se define, inicialmente, Elaine Nascimento, doutora em saúde pública pelo Instituto Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz), no Rio e coordenadora-adjunta da Fiocruz Piauí. Ela inaugura a série Cientistas da Fiocruz Nordeste, idealizada pela Coordenadora de Divulgação Científica da Vice-Presidência de Educação, Comunicação e Informação (VPEIC), Cristina Araripe.

Graças ao pré-vestibular popular na subida da Mangueira, Elaine realizou faculdade de Serviço Social na Universidade Federal Fluminense (UFF), em Niterói, Rio de Janeiro, onde também morou (Casa do Estudante) para viabilizar os estudos, já que no primeiro semestre precisou trabalhar como  diarista para suprir os altos custos com transporte e alimentação. Em pouco tempo, começou a estagiar na biblioteca da instituição e em projetos na área de educação.

Na Fiocruz, iniciou sua atuação como bolsista do Núcleo de Política Social, com Sonia Fleury e Lenaura Vasconcelos, onde teve a primeira aproximação com a ciência de maneira formal.  Fez mestrado e doutorado no IFF e, em 2006, prestou concurso para a Fiocruz, onde é servidora. Entre os muitos projetos em que está envolvida na unidade regional, para onde pediu transferência, e na Universidade Federal do Piauí, Elaine falou sobre as ações que coordena sobre gênero, raça, saúde e ciências, como o projeto direcionado para meninas de quatro anos idade e o dossiê sobre feminicídio na pandemia.

. De que forma você acha que a sua trajetória como mulher negra, coordenadora-adjunta da Fiocruz Piauí e doutora em saúde pode influenciar as meninas a se interessarem pela pesquisa e a ciência?

Sempre tive a consciência de que ser mulher no Brasil é difícil e ser negra é três vezes mais. Sofro racismo todos os dias em qualquer lugar que eu esteja, porque a nossa sociedade foi construída em cima do falso mito da democracia racial. E ainda temos que considerar o racismo ambiental, que significa que os territórios mais vulneráveis e que concentram extrema pobreza têm em sua maioria a população negra, cujo acesso aos direitos sociais constitucionais foi negado. As meninas negras e as pobres são as que têm menos oportunidade de sonhar. O lugar que eu ocupo hoje talvez estimule esses sonhos.

A Fiocruz é uma instituição secular, é importante que seja gerenciada, e já começou a ser com a Nisia na presidência, por mãos femininas, por perspectivas feministas e de preferência interseccionais, que entendam que várias opressões atravessam o mesmo corpo. Eu estive no início das discussões que construíram o Comitê de Gênero e Raça da Fiocruz. As mulheres negras precisam de mais espaço e maior representatividade em uma instituição tão importante como a Fiocruz, que tem, não só grande importância e relevância no Brasil, como na América Latina e no mundo.

 . Você acredita que houve um aumento do interesse das meninas pela ciência?

As meninas são e sempre foram muito interessadas em fazer ciência. O que tem ficado muito explícito nos projetos que viabilizamos para esse grupo em particular, é o quanto as meninas têm garra e só precisam das mesmas oportunidades dos meninos. Os processos de formação de educação influenciam muito nessa questão. Quando os responsáveis pela formação das crianças começam a trabalhar as tarefas domésticas, as meninas aprendem todas as atividades vinculadas ao espaço privado da casa, para que permaneçam ali. Já os meninos quando aprendem, normalmente a atividade é vinculada ao mundo de fora. Desta forma, isso envia uma mensagem que os meninos podem tudo e as meninas pouco podem. Ainda existe essa educação da esfera do campo das reproduções de manutenção das meninas do espaço privado, que acaba podando os seus sonhos.

Acredito que precisamos, e temos feito aqui no Piauí, dialogar diretamente com a educação formal, com as escolas, com os campos das políticas municipal e estadual de educação, para criar as infraestruturas que permitam o acesso das meninas. Então, essa forma de organização, do cuidado, das decisões do espaço privado e doméstico familiar precisam ser compartilhadas para que as mulheres não fiquem em desvantagem.

 . Como as ações institucionais de promoção das mulheres na ciência influenciaram o desenvolvimento de projetos das unidades?

Essas ações são fundamentais porque criam, não só equilíbrio, mas oportunidades dos talentos e das competências aparecerem. À medida que a instituição entende que o seu papel é promover o melhor da sua equipe e do seu grupo, consegue minimizar ou reduzir essas disparidades e inequidades de gênero. Parabéns pra nós que temos na condução da instituição uma mulher com muita potência e que enxerga muito à frente. Nesse período pandêmico, a Fiocruz conseguiu arrecadar recursos e financiou 145 projetos no Brasil, todos de ações emergenciais para comunidades, sendo 87% delas coordenadas por mulheres. Eu participei do grupo que avaliou os projetos e estou na mentoria de cinco deles, alguns do Nordeste e outros do Sudeste - São Paulo, Bahia, Ceará, Piauí e Paraíba -, todos coordenados por e voltados para mulheres de comunidades, em sua maioria negras, quilombolas, indígenas e periféricas. As ações da Fiocruz têm um componente de sensibilidade institucional, econômica, política, social e cultural e a percepção de que as mulheres fazem render melhor o que é econômico, traduzindo esses aspectos financeiros para dimensões que vão do social ao efetivo.

. Gostaria que você falasse sobre o projeto com meninas a partir de 4 anos e os desenvolvidos pela Fiocruz Piauí nos territórios voltados para gênero e realizados por mulheres.

Desde 2017, nós da Fiocruz Piauí, estamos com ações voltadas exclusivamente para a popularização da ciência infantil e infanto-juvenill, sendo que, entre esses, temos um projeto de empoderamento das meninas no mundo científico. Esse projeto tem início com meninas a partir dos quatro anos de idade, que estão no processo de alfabetização em quatro escolas municipais, sendo três na zona rural e uma na capital. A ideia de focar em meninas a partir de quatro anos é para trabalhar a perspectiva da ludicidade na construção de instrumentos de referência para a ciência. Nós sempre investimos nas escolas mais afastadas justamente pra poder levar a ciência para esses espaços que não possuem. Muito recentemente fizemos duas edições de mulheres e meninas na ciência e uma web conferência infantil, onde só tinham crianças falando de ciência. Foi muito interessante, e aprendemos muito com eles. Nós também realizamos uma revista científica mirim toda feita por crianças. A protagonista da história é uma menina negra da zona rural, que conta como é o processo de contaminação de parasitose.  No final, temos um exercício científico, onde nós trabalhamos com crianças durante dois anos.

Estamos no período da campanha da ONU Brasil “21 Dias de Ativismo: Uma mobilização mundial pelo fim da violência de gênero – de 20 de novembro a 10 de dezembro”. Você está à frente do dossiê “Feminicídio em tempos de Covid-19”. Fale um pouco sobre o estudo e a importância de campanhas como essa.

A pandemia de Covid 19 agudizou questões relacionadas à violência contra a mulher e ao feminicídio, sem falar no recorte do transfeminicídio. A campanha da ONU, cujo tema desse ano é “Onde Você Está que Não me Vê?”, revela a invisibilidade da sociedade em relação à violência sofrida por mulheres e meninas. Aqui a campanha começa antes, dia 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, porque no Brasil, os dados revelam que as mulheres negras têm três vezes mais chance de serem vítimas de feminicídio do que as brancas. Durante os quatro primeiros meses da pandemia, com a estratégia sanitária de isolamento social, as instituições de proteção e de enfrentamento da violência contra as mulheres tiveram a sua capacidade de atendimento reduzida, o que nos trouxe um grande problema, porque a medida adotada pelos agressores foi de retirar os celulares delas. Com isso, essas mulheres ficaram abandonadas à própria sorte e tiveram menos chance de sair desse ciclo de violência, uma vez que muitas estavam 24 horas no mesmo domicílio que o seu agressor.

Esse dossiê que nós produzimos traz um conjunto de artigos que refletem sobre o feminicídio no Brasil e alertam para um aumento do número de casos se comparado ao mesmo período de 2019, o que significa que o estado falhou em proteger as mulheres e meninas dos feminicidas. Estou cada vez mais convencida de que quando você usa a escola e a política de educação para discutir relações de gênero, instrumentaliza as meninas a se protegerem. Por outro lado, problematiza com os meninos no sentido de desconstruir essa cultura, que é patriarcal e de cunho machista, em que são socializados e aprendem que as mulheres são objetos que lhes pertencem.

Outro grande desafio é nomear o assassinato de mulheres por motivo de gênero como feminicídio. Isso é importante porque, se você não tem casos denominados como feminicídio explícito, não consegue formular políticas públicas de prevenção. A campanha da ONU tem o sentido de dar visibilidade a esse crime e proteger a vida das mulheres. É necessário investimento nas políticas públicas que produzam informações e ações preventivas que possam coibir esse tipo de crime e que tenham, de uma forma mais eficaz, uma dimensão punitiva.

 

“As ações da Fiocruz têm um componente de sensibilidade institucional de que as mulheres fazem render melhor o que é econômico, traduzindo para dimensões que vão do social ao efetivo”

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