Automutilação, depressão, fobias, ideações e tentativas de suicídio, transtorno alimentar, alcoolismo, dificuldades de se relacionar socialmente e problemas de autoestima. Essas são algumas das sequelas relatadas por mulheres que tiveram imagens íntimas divulgadas sem autorização, segundo uma pesquisa realizada pelo Grupo de Violência, Gênero e Saúde da Fiocruz Minas, por meio do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva. A pesquisa avaliou os danos à saúde das mulheres que sofreram esse tipo de violência e ainda como se dão os cuidados em saúde necessários nessas situações. O estudo é fruto da tese de doutorado de Laís Barbosa Patrocínio, sob orientação da pesquisadora Paula Bevilacqua, disponibilizada no repositório Arca, tendo como título Divulgação não autorizada de imagens íntimas: experiências de mulheres e de cuidados em saúde [1]. O estudo completo deu origem a seis artigos, sendo dois já publicados nas revistas Interface [2] e Ciência & Saúde Coletiva [3], e outros quatro que serão publicados em breve.
Para fazer a avaliação, as pesquisadoras fizeram entrevistas em profundidade com 17 mulheres que tiveram imagens íntimas divulgadas sem autorização e com dez profissionais de saúde e da assistência social que atenderam mulheres nessa situação. A idade das entrevistadas compreendeu o intervalo de 18 a 62 anos, sendo que, dentre as mulheres que vivenciaram a situação de violência, o intervalo de idade foi de 17 a 50 anos. Foram abrangidas 18 cidades de seis estados brasileiros, sendo capitais, cidades litorâneas, do interior e região metropolitana, de pequeno, médio e grande portes. Os depoimentos foram colhidos durante o segundo semestre de 2020.
“A pesquisa coincidiu com o primeiro ano da pandemia, o que trouxe vários complicadores. Foi preciso fazer todas as entrevistas por vídeo, por meio de plataforma digital. O lado positivo disso foi a possibilidade de conseguir uma diversidade territorial, com participantes de várias localidades, e também de classe e étnico-racial”, explica Laís.
Às mulheres vítimas da violência foi pedido que narrassem como foram produzidas e divulgadas suas imagens íntimas, o modo como isso as afetou e se buscaram apoio, seja no âmbito das relações pessoais seja das instituições. Já para as profissionais da saúde e da assistência social, foi pedido que relatassem os casos atendidos, os cuidados dispensados e os desafios na atenção a essa situação de violência. A ambas foi perguntado de que modo deveria ocorrer o acolhimento às mulheres que foram expostas.
Resultados
De acordo com a pesquisa, a forma como as mulheres são expostas variam, havendo diferentes possibilidades nos processos de produção, obtenção e divulgação das imagens. Há situações em que a mulher produziu o conteúdo, outras em que a produção ocorreu sem o conhecimento dela. As motivações para a exposição também são diversas, podendo envolver afirmação da masculinidade do homem que expõe, controle e condenação da sexualidade das mulheres, vingança, comercialização e extorsão. Além disso, há casos em que as imagens não se referem à sexualidade das mulheres, já que algumas foram expostas nos momentos em que estavam exaltadas, por exemplo, sob efeito de álcool ou em briga com parceiro.
“Isso revela uma vigilância não apenas da sexualidade feminina, mas também de outros comportamentos. A exposição é também de momentos de descontrole da pessoa, demonstrando uma necessidade de manter o comportamento feminino sob controle o tempo todo”, avalia a pesquisadora.
Ainda segundo a pesquisa, os danos gerados para a saúde mental das mulheres depois de serem expostas são diversos, incluindo desde um abalo na autoestima até tentativas de tirar a própria vida. A forma como cada pessoa vai ser afetada está diretamente relacionada à sua história de vida e estrutura familiar. Além disso, a exposição da intimidade agrava fragilidades pré-existentes.
“É o caso de distúrbios alimentares e estados depressivos; quem já tinha predisposições desenvolveu. Outra consequência importante é o sentimento de culpa, relatado tanto pelas vítimas como pelos profissionais. É uma culpabilização externa que acaba virando interna e vai minando a autoestima. Isso interfere em todo o processo, porque a mulher deixa de procurar ajuda porque se sente culpada, acha que, de alguma forma, contribuiu para a situação”, diz Laís. “Além disso, o dano se dá sobretudo nas relações. Muitas das entrevistadas relataram que o que mais machuca não é a vergonha da exposição, mas o fato de não serem apoiadas por familiares e amigos”, afirma.
No que se refere aos cuidados, a pesquisa constatou alguns pontos alvo de críticas das profissionais entrevistadas, que atuam na rede de atenção. Entre os aspectos citados estão dificuldade de efetivar uma lógica de rede devido a racionalidades conflitantes entre as instituições, ausência de conforto e privacidade na recepção e no atendimento, necessidade de contar a história a vários profissionais, autoafastamento dos atendimentos que envolvem situações de violência por parte de profissionais, além de julgamentos na assistência policial.
“Há pontos de divergência, como por exemplo, no que se refere à necessidade de contar a história várias vezes. Para alguns profissionais, essa situação ainda é melhor do que contar uma única vez para várias pessoas ao mesmo tempo. Mas o que todos concordam é que é preciso pensar em protocolos em relação ao atendimento à vítima, de forma a evitar que ela precise se expor ainda mais. O acolhimento inaugura o atendimento, então, tem que ser a porta de entrada”, destaca Laís.
Além de avaliar os danos causados à saúde mental das pessoas que tiveram imagens divulgadas sem autorização e como se dão os cuidados às vítimas, a pesquisa também verificou como o tema tem sido tratado no universo acadêmico. Uma revisão bibliográfica realizada pelas pesquisadoras concluiu que há uma abordagem conservadora até mesmo nos artigos científicos. “Apenas 15% dos artigos sobre o vazamento de imagens íntimas classificam a situação como violência de gênero. Então, nosso estudo pretende a chamar a atenção também da própria academia para refletir sobre essa abordagem”, ressalta Laís.
A pesquisa discutiu também as formas de vivência da sexualidade pelas mulheres de forma autônoma e ainda as possibilidades de discussão dessas questões no ambiente escolar.