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Livro vira a história da Fundação Rockefeller de cabeça para baixo


10/07/2015

Alessandra Eckstein - Editora Fiocruz (alessandra.eckstein@fiocruz.br)

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Em entrevista à Editora Fiocruz, o autor Steven Palmer compara a instituição a um 'parasita do bem', capaz de se integrar aos sistemas locais de saúde em países onde atuou

Humanitarismo ou imperialismo sutil? Aos olhos de alguns pesquisadores, a atuação da Fundação Rockefeller na América Latina e no Caribe tinha outro objetivo além da questão da saúde pública: consolidar o poder norte-americano. Mas será que a Fundação era, de fato, imperial?  Sim, de acordo com o professor Steven Palmer, autor do livro Gênese da Saúde Global: a Fundação Rockefeller no Caribe e na América Latina, embora ele prefira chamar atenção para outros aspectos que têm sido menos estudados. Ele investigou como o estado norte-americano imperial e hegemônico se saiu no processo de desenvolvimento dos projetos de saúde pública implementados pela Fundação. Segundo o professor Palmer, os programas da Fundação eram extremamente complexos e não se deve generalizar qualquer tipo de análise, mas sim explorar a grande diversidade de conexões criadas. O pesquisador destaca que, no caso do tratamento da ancilostomíase, os agentes da Fundação Rockefeller souberam se adaptar às culturas locais e trabalharam em conjunto com as comunidades. 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Palmer esteve no Brasil, no início deste mês, para participar do workshop Doenças Tropicais na América Latina e no Caribe: uma perspectiva histórica, na Fiocruz. Na ocasião, falou à Editora Fiocruz sobre alguns dos principais resultados apresentados no livro e também sobre as novidades incluídas na edição brasileira, próximo lançamento da Coleção História e Saúde. Steven Palmer - Ph.D. pela Columbia University - pertence à cátedra canadense de pesquisa em História Internacional da Saúde e é professor de história na University of Windsor, Canadá. 

Editora Fiocruz (EF): Lançaremos em breve a edição brasileira de Gênese da Saúde Global. Mas, afinal, o que é saúde global?
Steven Palmer (SP): O título do livro causa uma certa controvérsia porque saúde global é uma expressão que não era usada naquela época (na década de 1910). A Fundação Rockefeller era reconhecida como uma organização de saúde internacional. Só nas décadas de 50 e 60 ou até mais tarde, os estudiosos começaram a falar em saúde global, associando-a ao chamado processo de globalização. Eu usei essa expressão para mostrar o quão pioneira foi a Fundação Rockefeller. Eles estavam criando de uma forma incrivelmente ágil, praticamente da noite para o dia, uma rede mundial de atuação em saúde, graças a um enorme aporte de verbas. Então os médicos, doutores e agentes de saúde pública da Fundação Rockefeller concebiam o projeto como um todo, num contexto global e não apenas internacional ou entre países. Além disso, eles tinham uma visão global da vida humana. 

EF: A Fundação Rockefeller teve um papel de pioneirismo?
SP:
 Era o que eu queria mostrar: uma visão bastante precoce, que antecipou algumas das estruturas e relações que hoje associamos com o termo global. Eles foram para um mundo onde nenhuma instituição internacional de saúde pública havia pisado antes. E da noite para o dia a Fundação Rockefeller estava atuando em quase todos os territórios políticos do mundo. No espaço de três anos eles partiram do nada para um modelo de operação extremamente sofisticado e altamente conectado, que mantinha contato com autoridades políticas em todas as jurisdições do mundo.

EF: Por que o interesse em estudar a saúde global?
SP:
 Comecei a estudar a Fundação Rockefeller não a partir dos arquivos mantidos em Nova Iorque, mas sim de uma perspectiva bastante local, com atores locais. Isso mudou algumas ideias que eu tinha formadas. Eu me interessei por ter a oportunidade de estudar os arquivos nacionais de um pequeno país da América Central, a Costa Rica, que teve um encontro com a Fundação Rockefeller logo no início do funcionamento dessa instituição. Mas os agentes de saúde pública na Costa Rica já estudavam e tratavam a ancilostomíase [ver quadro abaixo] muito antes da chegada da Fundação ao país. Quando os técnicos do poderoso império de saúde norte-americano chegaram, eles não traziam nada de muito novo, na realidade. Os costa-riquenhos vinham trabalhando no controle da ancilostomíase por quase uma década, de forma bastante efetiva. Eles trabalhavam em quase todo o país, mas não tinham muitos recursos e, claro, estavam trabalhando de forma isolada. Então, a Fundação Rockefeller ofereceu ao país verbas e também os “reformadores” da saúde pública, que eram considerados a vanguarda e sinal de prestígio porque representavam a grande ciência norte-americana. E tudo isso ajudou a criar uma agenda nacional de saúde, que já estava em andamento, mas ainda não de forma eficaz.

Ancilostomíase? Que 'bicho' é esse?
Ancilostomíase ou ancilostomose, popularmente conhecida como amarelão, é uma doença muito antiga que, de acordo com a Organização Mundial de Saúde, atinge cerca de 740 milhões de pessoas, principalmente as populações mais pobres e desfavorecidas das regiões tropicais e subtropicais do mundo (dados de 2008). A doença é transmitida por dois tipos de helmintos: Necator americanus e Ancylostoma duodenale. A principal fonte de infecção para a ancilostomíase é o ser humano. Nas fezes da pessoa contaminada com o verme adulto existem ovos que se desenvolvem como larvas no ambiente. Quando entram no corpo humano, medem cerca de meio milímetro. Elas perfuram a pele, entram na circulação sanguínea e são levadas ao coração e pulmões até chegar ao intestino delgado onde se fixam, se alimentam, crescem e se reproduzem. No caso do Ancylostoma duodenale, a contaminação pode-se dar também pela ingestão das larvas em alimentos ou água contaminada, o que facilita o caminho até o intestino. Fonte: Invivo/Fiocruz

 

EF: Gênese da Saúde Global: a Fundação Rockefeller no Caribe e na América Latina é uma versão ampliada e revista da pesquisa que o senhor lançou em 2010 pela Editora da Universidade de Michigan. Quais as novidades da edição brasileira?
SP:
 Esse é um livro muito melhor do que a versão em inglês. Primeiramente, quero destacar o trabalho excepcional da tradução e o cuidado com o texto. Para essa edição, pesquisei também o trabalho da Fundação Rockefeller no tratamento da ancilostomíase no Brasil e contei com a ajuda da doutoranda Ana Paula Korndorfer, do Rio Grande do Sul, que trabalhou comigo na Universidade de Windsor por seis meses. Em uma nova introdução, situo o livro no contexto brasileiro e mostro que os programas caribenhos e centro-americanos foram a origem do trabalho da Fundação Rockefeller no Brasil. Para entender como foi a atuação deles aqui é preciso conhecer o que foi feito antes, que tipo de planos eles tinham. Outra novidade é um capítulo que considero o melhor texto que já escrevi, no qual analiso o tratamento da ancilostomíase em um contexto global, de como ele foi levado adiante nos países através de uma nova droga – o óleo de quenopódio. Esse medicamento causou muitas mortes, especialmente de crianças. Pesquisei por qual razão os agentes da Fundação Rockefeller continuaram usando a droga mesmo sabendo que o custo era alto. É uma questão que diz respeito ao desenvolvimento de práticas em um contexto global, mas também sobre a ética da saúde internacional. Tracei o padrão de comportamento ético que se desenvolveu na Fundação Rockefeller como o resultado de uma negociação complexa entre: as famílias que sofreram a morte de crianças; o interesse das elites médicas locais; e as preocupações delas em participar dos programas da Fundação quando essas ocorrências infelizes começaram a se tornar uma preocupação geral. 

EF: O senhor conta uma história bem emblemática de um rapaz que morreu devido ao tratamento...
SP:
 Sim, uma história chamou a minha atenção. Em 1925, um rapaz de Bucamaranga, na Colômbia, morreu devido ao tratamento. O pai dele escreveu uma carta, de forma bastante ingênua, endereçada a “John D. Rockefeller” e o incrível é que o próprio John Rockefeller a leu. Então, temos um homem muito pobre, lá na América Latina, que escreve uma carta ao homem mais poderoso, mais rico do mundo. Algo como se alguém hoje aqui no Brasil mandasse uma carta para o Bill Gates.  Quando o Rockefeller leu a carta, ele provavelmente se sentiu culpado porque muitas crianças morreram por overdose de óleo de quenopódio – em 1919, na Colômbia, numa região chamada Hacienda Argentina, em apenas uma manhã, sete crianças faleceram envenenadas pelo medicamento. O sentimento anti-imperialista que havia na década de 1920 na América Latina certamente contribuiu também para que o poderoso Rockefeller chamasse a equipe para conversar, pois era preciso fazer algo a respeito. Eles acabaram indenizando a família, o que abriu um precedente interessante.  Claro que a Fundação tentou disfarçar o pagamento, mas o pai colombiano se mostrou bem consciente a respeito da moral econômica da saúde internacional: voltou a escrever à cúpula da Fundação Rockefeller, dessa vez contando que, com o dinheiro, comprou uma vaca para poder alimentar a família e que todos os dias lembrava-se do filho e agradecia a generosidade da Fundação por tê-lo indenizado. Para mim, essa é uma bela história e fico feliz em tê-la no livro, pois ela ilustra a complexidade da interação da saúde global e de como ela se conectou e continuou se conectando a qualquer pessoa – dos mais humildes até as poderosas elites das metrópoles. 

EF: Qual a sua expectativa para o lançamento da edição brasileira do livro?
SP:
 É uma grande honra poder publicar o livro no Brasil.  Meu trabalho de colaboração com os pesquisadores da Casa de Oswaldo Cruz na última década foi o mais recompensador da minha carreira e eu aprendi quase tudo o que sei a respeito da medicina tropical e história da saúde com essa feliz parceria.  Eu acredito que aqui há um público bastante interessado nas questões de que o livro trata. Aqui há mais consciência sobre a importância da saúde pública. Fico feliz que a grande e sofisticada comunidade científica brasileira possa ler meu trabalho em português.

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