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Importância dupla do tratamento contra a hanseníase


23/06/2017

Por: Maíra Menezes (IOC/Fiocruz)

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Uma pesquisa liderada pelo Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) demonstra que a terapia contra a hanseníase traz benefícios não somente para o paciente, mas também para os familiares e demais pessoas que convivem na mesma casa. Sem o tratamento, o bacilo causador da doença, o Mycobacterium leprae, é constantemente expelido pelas vias aéreas e pode infectar outras pessoas. Porém, logo após o início da terapia, os pacientes param de expelir o microrganismo. Publicado na revista científica ‘Plos Neglected Tropical Diseases’, o estudo aponta que o tratamento dos pacientes contribui também para o fortalecimento da resposta imune dos familiares e demais contatos domiciliares, que pode ser enfraquecida pela atuação da bactéria. 

Segundo o imunologista Geraldo Pereira, pesquisador do Laboratório de Microbiologia Celular do IOC e um dos coordenadores do trabalho, as pessoas que vivem no mesmo domicílio dos pacientes com hanseníase multibacilar – na qual o número de bactérias encontradas no organismo e expelidas pelas vias aéreas é alto – apresentam elevado risco de contrair a doença. Em comparação com pessoas que vivem em áreas com transmissão do agravo, mas sem esse tipo de exposição em casa, os contatos domiciliares têm entre oito e dez vezes mais chances de adoecer. “Mesmo assim, a hanseníase não é uma doença altamente contagiosa. O M. leprae é uma bactéria de crescimento lento e a manifestação da doença depende, em grande parte, da interação entre o microrganismo e o sistema imune do hospedeiro. Em média, apenas 7% dos contatos domiciliares de pacientes multibacilares desenvolvem hanseníase”, explica o pesquisador. 

Considerando estes fatores, o Ministério da Saúde recomenda a avaliação clínica dos contatos domiciliares de todos os pacientes com hanseníase. De acordo com a pesquisadora Maria Cristina Pessolani, chefe do Laboratório de Microbiologia Celular do IOC e também coordenadora do estudo, o objetivo é identificar precocemente os indivíduos doentes. Para aqueles que não apresentam sinais do agravo, é indicada a aplicação da vacina BCG. “As principais medidas para reduzir o risco de adoecimento entre os contatos domiciliares são o tratamento do paciente diagnosticado e a imunização com BCG, que só não é recomendada para quem já recebeu duas doses anteriormente. Na pesquisa, investigamos de que forma essas duas medidas afetam a imunidade, que é um fator central no desenvolvimento da hanseníase”, afirma a microbiologista. Mais conhecida pela sua aplicação na prevenção de formas graves de tuberculose em crianças, a BCG é preparada a partir do Mycobacterium bovis, uma bactéria bovina semelhante a algumas bactérias que infectam os seres humanos, incluindo o M. leprae. Pesquisas apontam que o reforço da imunização para contatos domiciliares de pacientes reduz em cerca de 50% o risco de adquirir hanseníase.

Células de defesa ativas contra o M. leprae
Para análise da imunidade, amostras de sangue de 16 contatos domiciliares de pacientes com hanseníase multibacilar foram coletadas logo após o diagnóstico da doença em um familiar ou pessoa que habita na mesma residência. Ao mesmo tempo em que os pacientes iniciaram o tratamento, 13 dos 16 participantes do estudo receberam o reforço da BCG. Entre os que não foram imunizados, dois já tinham recebido duas doses da vacina anteriormente e um apresentava possíveis sinais de adoecimento, que foi descartado durante o acompanhamento. 

Pelo menos seis meses depois, novas amostras de sangue foram coletadas dos 16 voluntários. Em quase todos os casos, os testes revelaram maior frequência de células de defesa, chamadas de linfócitos T, ativas contra a bactéria da hanseníase. Ou seja, cerca de seis meses após o início do tratamento da hanseníase pelo paciente infectado e da vacinação com BCG para os contatos com essa indicação, a resposta imune dos participantes tinha sido fortalecida. “Os linfócitos T atuam contra patógenos intracelulares, como a bactéria da hanseníase, induzindo a morte das células infectadas e produzindo substâncias que ativam outras células de defesa para combater a infecção. Após entrar em contato com um microrganismo pela primeira vez, essas células adquirem um tipo de memória, que torna a reação mais rápida em contatos posteriores. A maior frequência de linfócitos T ativos contra o M. leprae observada na segunda coleta de amostras indica que a reação imunológica contra o microrganismo foi fortalecida”, explica Fernanda de Carvalho, estudante de doutorado da Pós-graduação em Biologia Celular e Molecular do IOC e primeira autora do estudo. 

Além da maior frequência de linfócitos T ativos contra a bactéria da hanseníase como um todo, os cientistas identificaram um maior número dessas células capazes de reconhecer regiões de proteínas do microrganismo – chamadas epítopos – que são específicas do M. leprae, não sendo encontradas na composição da vacina BCG. A pesquisa sugere também que outro tipo de célula de defesa, conhecido como monócito, passou a responder com maior intensidade contra a bactéria, liberando uma quantidade superior de substâncias inflamatórias que contribuem para destruição de patógenos intracelulares. Indicando um efeito de longo prazo, o reforço da imunidade foi detectado mesmo entre contatos cuja segunda coleta de amostras ocorreu mais de dois anos depois da primeira avaliação.

Bactéria pode inibir reação imune
O fato de que as alterações foram observadas entre os indivíduos que não receberam a vacina BCG levou os cientistas a considerarem que, pelo menos parcialmente, a melhora da imunidade foi associada ao fim da exposição cotidiana ao M. leprae, uma vez que os pacientes diagnosticados com hanseníase iniciaram o tratamento. O resultado reforça a hipótese de que o contato constante com a bactéria poderia inibir a resposta imune entre os contatos domiciliares dos pacientes multibacilares. “O sistema imunológico possui mecanismos de regulação negativa, que atuam para evitar reações exacerbadas contra moléculas inofensivas. Isso é importante, por exemplo, para impedir a ocorrência de alergias e de doenças autoimunes. No caso dos contatos domiciliares dos pacientes multibacilares, é possível que a exposição contínua a um grande número de bactérias induza a tolerância ao M. leprae, ativando a regulação negativa e prejudicando as ações de defesa do organismo”, pondera Fernanda.

A partir destes resultados, a próxima etapa da pesquisa deve avaliar a função das células responsáveis pela regulação do sistema imune, chamadas de linfócitos T reguladores, entre os contatos domiciliares de pacientes com hanseníase multibacilar. Segundo os cientistas, a identificação de alterações pode abrir portas para o desenvolvimento de novas terapias ou estratégias de prevenção da doença. “As pesquisas sobre a regulação do sistema imune tiveram grande avanço nos últimos anos. Em busca de novos tratamentos contra o câncer, estão em estudo vacinas terapêuticas que têm como alvo a inibição dos linfócitos T reguladores, de forma a facilitar a reação imunológica contra as células cancerígenas. Caso a ação do M. leprae sobre essas células seja um fator importante para o adoecimento, o mesmo tipo de abordagem poderia ser um caminho na hanseníase”, avalia Geraldo. 

Liderado pelo Laboratório de Microbiologia Celular, o estudo foi realizado em parceria com o Laboratório de Hanseníase do IOC – que mantém o Ambulatório Souza Araújo, unidade de referência no atendimento a pacientes com a doença – e com Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas (INI/Fiocruz). A Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) apoiou o projeto.

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