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Em entrevista, Maurício Barreto fala sobre autonomia e futuro da Fiocruz

Foto de Mauricio Barreto

04/09/2017

Raíza Tourinho (Nucom/Cidacs/Fiocruz Bahia)

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“O compromisso central da Fiocruz é com a melhoria da saúde da população brasileira. Nesse processo, tudo aquilo que fere esses princípios a instituição deve adequadamente se posicionar contra”. É assim que o epidemiologista Mauricio Barreto, coordenador do Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde (Cidacs/IGM/Fiocruz), acredita que a Fiocruz deve se portar. A fim de refletir sobre o papel da Fiocruz em um panorama com crescimento da desigualdade social, avanço das mudanças climáticas e políticas de proteção social e o próprio Sistema Único de Saúde ameaçados, Barreto apresenta o Seminário “Desafios para a saúde global no contexto de ampliação das desigualdades e dos riscos ambientais e tecnológicos: reflexões sobre a Fiocruz do futuro”.

O evento, organizado pela Coordenação das Ações de Prospecção da Presidência da Fiocruz, é o primeiro encontro preparatório para VIII Congresso Interno da Fundação e será realizado no dia 6 de setembro, das 10h às 12h30, no Auditório Museu da Vida, no Campus Manguinhos. O coordenador de Relações Internacionais em Saúde (Cris), Paulo Buss, mediará o evento, que também é parte das comemorações do Ano Oswaldo Cruz.

Confira nesta entrevista com o pesquisador um pouco sobre o papel da Fiocruz no contexto brasileiro, a importância do posicionamento de instituições como a Fiocruz e a centralidade da ciência para subsidiar tomada de decisões públicas.

Como surgiu a ideia de abordar esse tema?

O tema nasceu de uma discussão sobre a necessidade de falar um pouco sobre o futuro a Fiocruz.  Quer dizer, trazer uma questão de saúde para falar um pouco sobre a instituição Fiocruz no futuro.

Enquanto epidemiologista, a minha reflexão é centrada na ideia de que as condições de saúde das populações humanas são um imenso reflexo do contexto em que vivem e da trajetória histórica. A partir dessa ideia – e de alguns elementos recentes, como o processo de neoliberalismo e ampliação das desigualdades sociais no mundo e o surgimento de uma série nova de riscos tecnológicos e ambientais diversos – proponho pensar como uma instituição tipo a Fiocruz, de importância e características universais, pode ser pensada e projetada para o futuro.

Evidentemente, minhas reflexões têm imenso limite, já que eu penso a partir das condições de saúde global e como a instituição poderia se projetar, mas há uma série de questões políticas e de posicionamentos institucionais que precisam ser adicionadas em análises complementares.

Considerando que o objetivo maior de uma instituição de pesquisa e desenvolvimento no campo da saúde é trazer melhorias para a saúde da população, começar a reflexão a partir dos problemas de saúde pode ser útil para projetar os dilemas, as dificuldades, e o papel que esse tipo de instituição tem a desempenhar no futuro da sociedade humana.

O Brasil vive um momento muito específico na história. No ano passado foi aprovada a PEC do Teto [Proposta de Emenda Constitucional 241/55], estamos tendo cortes sistemáticos nas áreas de ciência, tecnologia e saúde. Estamos vivendo um cenário de crise, sobretudo nas áreas de políticas sociais...

O caso do Brasil é especial. É quase que uma tragédia humana. Depois de um período de expansão dos campos de ciência e tecnologia e do conhecimento, em que se vislumbrava um projeto de sociedade mais humanizada e distributiva, o processo foi bruscamente interrompido ainda no início e o que vemos é um quadro dantesco de regressão. Se visualiza uma ampliação das desigualdades sociais e descompromisso com todas as políticas de futuro. Isso é muito grave na medida em que uma sociedade como a nossa não pensa em futuro. Faz parte das políticas econômicas e sociais pensar nisso.  Deixamos de pensar o futuro para construir uma sociedade baseada em preceitos ou manutenção do ‘status quo’, sem pensar como as políticas sociais e econômicas podem beneficiar a sociedade. Esperamos que isso seja transitório, mas evidentemente esse processo entra na equação.

A Fiocruz é uma instituição dentro dessa conjuntura e, evidentemente, está sofrendo. Se isso perdurar, vai continuar sofrendo e encontrando dificuldade para sua projeção. Como o momento mudou rapidamente, a expectativa é de haja uma nova inversão.

A própria história da Fiocruz é alinhada ao período histórico. Sofreu o massacre de Manguinhos, a retaliação durante a Ditadura Militar, se adiantou a Redemocratização do País [A partir de 1985, houve a institucionalização das práticas e do uso dos instrumentos democráticos e o primeiro presidente eleito, Sergio Arouca, dizia que “saúde é democracia e democracia é saúde”], auxiliou na Constituição de 1988. Enfim, sempre esteve alinhada e exercendo alguma influência no momento político. Qual a importância de uma instituição científica como essa se posicionar politicamente com embasamentos científicos? Adianta?

É uma questão complexa. Antes de se posicionar politicamente, é preciso se posicionar com os compromissos éticos e sociais, realizando transformações positivas para a sociedade. O compromisso central da Fiocruz é com a melhoria da saúde da população brasileira. Nesse processo, tudo aquilo que fere esses princípios a instituição deve adequadamente se posicionar contra. A política de uma instituição deve defender os seus princípios e compromisso com a sociedade.

Agir politicamente não é a função primária de uma instituição, mas é sua função defender os princípios fundamentais e dar a sociedade elementos que promovam a reflexão. As decisões políticas são tomadas pela sociedade. A Fiocruz precisa ter autonomia para se posicionar com base fundamentada sobre tudo aquilo que põe em risco sua trajetória.

No momento em que se desmonta um sistema de saúde que, em si, já é problemático, e se visualiza regressões no projeto de construção de um Sistema Único de Saúde – e os sinais disso são evidentes – é preciso se manifestar. São decisões que afetam o compromisso com a saúde da população brasileira. É papel da Fiocruz, nesse sentido político de ação, atuar como um alter ego, que vá à frente da sociedade, defenda e crie argumentos para mostrar os riscos, perigos e problemas, como a Fiocruz já vem fazendo em questões mais específicas.

Entender a conjuntura que se vive hoje e trabalhar com esse entendimento de que há riscos e quais mudanças eles podem trazer para a sociedade é parte de um projeto de defesa da sociedade. Não é uma política partidária, mas manifestação de compromisso com a sociedade. Se, a partir dos conhecimentos que gera, [a instituição] identificar que há riscos para a sociedade, é preciso se manifestar contra.

O Cidacs [centro coordenado por Barreto] trabalha com a visão de ciência para subsídio de políticas públicas. Há algum tempo o senhor estuda a questão de políticas públicas baseadas em evidências científicas e, atualmente vivemos um cenário adverso. Esse cenário pode mudar? A ciência pode passar a ser considerada um subsídio importante para a tomada de decisão?

Não sou daqueles que acham que a ciência é o único elemento para tomada de decisão.  A ciência é parte dos conhecimentos disponíveis para que a sociedade tome sua decisão. As decisões são construídas por um conjunto mais complexo de narrativas e a ciência é um desses elementos. A ciência pode oferecer subsídios para tomadas de decisão pela sociedade, mas vivemos um momento em que mesmo isso está sob riscos. No plano internacional, com a eleição de Donald Trump. Aqui no Brasil, vivemos os cortes no campo de ciência e tecnologia, a desvalorização das universidades, dos centros e institutos de pesquisa. Todo esse conjunto nos aponta um risco de minimizar esse papel ainda mais do que já é, não apenas pela descapitalização total e desfinanciamento dessas instituições, como também pela desvalorização do elemento principal que ela produz: o conhecimento.

Estamos vivendo um período de certa desvalorização desse conhecimento. Nos Estados Unidos, Trump vem tomando algumas decisões nesse sentido, um dos exemplos mais recentes é em relação as mudanças climáticas. O papel que o governo brasileiro vem tomando em relação à Amazônia, às políticas sociais, contenções orçamentárias para campos essenciais, como saúde, educação, tecnologia e ciência, nos mostra que estamos vivendo um momento que põe sobre risco essa possibilidade de restrição e minimização da importância desses elementos. No meu ponto de vista, é uma catástrofe. Vivemos um momento crítico nesse aspecto, cabe a sociedade encontrar soluções que permitam um processo de reversão dessa tendência que vem se implantando no país.

Sobre o médico epidemiologista Mauricio Barreto:

É coordenador do Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde (Cidacs), pesquisador sênior do Instituto Gonçalo Moniz (IGM/Fiocruz) e professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (ISC/UFBA). Barreto acumula uma carreira de grande prestígio científico: ele é membro titular das academias baiana e brasileira de ciências, da The World Academy of Science (TWAS) e pesquisador I-A do CNPq; publicou mais de 400 trabalhos em revistas científicas, além de 40 monografias e capítulos de livros; orientou 18 dissertações de mestrado e 25 teses de doutorado; foi Conselheiro para América Latina da Associação Internacional de Epidemiologia (2002-2008) e participou de diversos comitês assessores na Organização Mundial da Saúde. Em maio, sua carreira foi reconhecida pela Assembleia Legislativa da Bahia com a Comenda 2 de Julho, a mais alta condecoração da casa.

*Colaborou Manuela Pena Cal

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