Os obstáculos no acesso à alimentação, higiene e direitos são apenas algumas dificuldades que a população em situação de rua enfrenta diariamente e a torna ainda mais vulnerável. Esse grupo, invisibilizado há tantos anos e tão heterogêneo, aumentou durante a pandemia. A afirmação foi feita por especialistas e representantes de movimentos sociais durante audiência pública da Câmara dos Deputados realizada na última segunda-feira (7/9).
De acordo com a representante do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) Tatiana Dias, a estimativa entre fevereiro e março do ano passado, momento de eclosão da pandemia, era de 221 mil pessoas em situação de rua. Tudo indica que o número aumentou, como reforça Veridiana Machado, representante do Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Nacional para a População em Situação de Rua (Ciamp-Rua). “Não sabemos quantas pessoas estão em situação de rua, mas com a pandemia, é algo que nos salta os olhos. O número é expressivo, inclusive de crianças nos sinais pedindo dinheiro. Basta ir à rua e ver”, destacou.
Para o pesquisador do Núcleo de População em Situação de Rua da Fiocruz Brasília Marcelo Pedra, o agravamento da situação econômica e social no país traz um novo perfil das pessoas em situação de rua e alerta para a necessidade de ações muito mais céleres para evitar que elas fiquem mais tempo nas ruas e tenham menor adesão às ofertas e ações públicas. Já para Vanilson Torres, que passou 27 anos nas ruas de Natal e hoje é representante do Movimento Nacional da População em Situação de Rua, esse novo perfil é de pessoas pertencentes à classe trabalhadora que não conseguem mais pagar seus aluguéis e contas e estão indo para as ruas em busca de alimento, mas permanecem por não terem mais como se manter.
Os dados apresentados pelo psicólogo sanitarista Marcelo Pedra confirmam [1]. De acordo com a pesquisa realizada pela Prefeitura do Rio de Janeiro, 31% das pessoas estão na rua há menos de um ano, sendo 64% por perda de trabalho, moradia ou renda. Destes, 42,8% afirmaram que se tivesse um emprego sairia das ruas. Ele apresentou ainda dados de cadastro de serviços do SUS que mostram que houve um aumento de 35% das mulheres em situação de rua.
Como formas de lidar com a situação, o pesquisador destaca a ampliação das ofertas de acolhimento institucional e abrigo na perspectiva de baixa exigência, ampliação da estratégia de trabalho e renda, e a construção de estratégias de habitação e moradia, como o aluguel social.
“É fundamental que tenhamos estratégias de moradia e renda para as populações recentes em situação de rua”, destacou Pedra ao lembrar da iniciativa da Revista Traços [2], vendida no Distrito Federal por pessoas em situação de vulnerabilidade, que recebem 70% do valor de cada exemplar vendido para custear gastos com moradia e alimentação. A iniciativa está sendo ampliada para o Rio de Janeiro e Niterói.
A falta de dados dos impactos da pandemia nessa população, como o número de infectados e de óbitos foi um aspecto levantado pelos participantes como um empecilho para pensar em políticas públicas de saúde e de proteção social.
“Já vivíamos a falta de políticas públicas para a população em situação de rua, mas a pandemia só escancarou tudo isso. Como ficar em casa se não temos moradia? Como usar máscara se não temos onde lavar? Já vivemos socialmente isolados. Passamos fome, frio e ainda enfrentamos a Covid-19. A pandemia desnudou as mazelas sociais existentes”, afirmou Vanilson, que também demonstrou preocupação com a assistência a crianças e adolescentes em situação de rua e o futuro delas.
Para Kelseny Medeiros, representante da Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama, a dificuldade de transparência e acesso a dados fez com que o governo e a sociedade civil não estivessem preparados para receber essa população e interpretar como a pandemia os atingiu. Ela realizou uma pesquisa em São Paulo e afirmou que os gargalos são comuns a outros estados: as maiores dificuldades encontradas foram na realização de testes de Covid-19 para identificar os infectados, falta de transparência e de acesso a dados.
“A maioria dos casos não é quantificado, há uma invisibilidade histórica. A pandemia agravou problemáticas anteriores e revelou a insuficiência dos modelos de abrigos até então implementados”, completou o presidente da Comissão de Legislação Participativa da Câmara, deputado Waldenor Pereira.
Para obtenção dos dados, Marcelo Pedra defendeu a inclusão dessa população no próximo censo nacional; a integração dos sistemas da assistência social – CadÚnico e do e-SUS, com dados da atenção primária, incluindo das equipes de Consultório na Rua; e a construção de uma diretriz nacional para que o atendimento seja feito de forma igualitária em grandes cidades e municípios.
O pesquisador falou ainda sobre a experiência da Fiocruz Brasília e os produtos voltados a essa população realizados até o momento, como a publicação da cartilha Saúde Mental e Atenção Psicossocial na Pandemia Covid-19: recomendação para os Consultórios na Rua e a rede de serviços que atuam junto com a população em situação de rua [3] e do livro Recomendações e orientações em saúde mental e atenção psicossocial na Covid-19 [4]” e a primeira oferta do curso O cuidado da população em situação de rua em temos de pandemia da Covid-19 [5].
Falta de abrigamento
Outro aspecto apontado pelos participantes da audiência foi o déficit de abrigos para acolher a população em situação de rua em estados e municípios brasileiros. De acordo com Veridiana Machado, representante do Ciamp-Rua, não houve ampliações de vagas em abrigos e nem projetos de moradias, mas as remoções continuaram acontecendo. “Muitos são removidos junto com seus pertences como se fossem lixo. Levam ainda documentos e carteirinha de vacinação, resultado de um trabalho das equipes para vincular essas pessoas aos serviços de saúde”, denunciou. Ela falou sobre a necessidade de mudar essa cultura e pensar como as cidades se tornam menos inóspitas e mais acessível para acolher essas pessoas para que todo o processo de sair da rua seja respeitado.
Os pesquisadores e representantes defenderam que é preciso fortalecer as redes que já existem e construir políticas permanentes e não apenas de estado, em um processo em que a elaboração conte com a participação social das redes de apoio e dos que sabem o que é viver na rua.
O acesso ao auxílio emergencial também foi lembrado durante a audiência. O representante da Associação Nacional de Defensores Públicos, Antonio Vitor Barbosa de Almeida afirmou que muitas pessoas em situação de rua não conseguiram se cadastrar para receber a renda pelo processo burocrático, como a obrigatoriedade de inclusão de um telefone celular no cadastro, por exemplo, além de problemas no acesso a alguns serviços que passaram a atender de forma remota durante a pandemia.
Vacinação
A população em situação de rua entrou como grupo prioritário no Programa Nacional de Imunizações (PNI) do Ministério da Saúde, mas ainda não foi contemplada em alguns estados e municípios. O pesquisador da Fiocruz Brasília Marcelo Pedra defendeu a ampliação da vacina com a estratégia de busca ativa pelas equipes dos Consultórios na Rua. “Temos que fazer com que essas doses da vacina cheguem à população, em uma parceria com a Rede SUAS [6] e com as instituições da sociedade civil”, disse.
Já Vanilson, representante do Movimento Nacional da População em Situação de Rua, criticou a burocracia de alguns municípios para a vacinação dessa população. “É inadmissível que diante de uma crise sanitária e financeira, onde mais pessoas estão indo para as ruas, há lugares que dificultem a vacinação, exigindo que a população apresente uma comprovação de que está nas ruas. É preciso pensar em estratégias para facilitar. Nós da população em situação de rua também somos do SUS! Uma população que não tem casa, não tem água, não tem segurança alimentar e nutricional e que não tem dados epidemiológicos, é preciso pelo menos garantir a vacinação”, ressaltou.
Para Kelseny Medeiros, “proteger a população de rua é também proteger a população que está em casa”.
A audiência foi transmitida pelo YouTube: