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Cultura de comunicação de rede requer uma boa educação, diz Pierre Lévy


03/09/2015

Por Danielle Monteiro / Agência Fiocruz de Notícias

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Filósofo da inteligência coletiva, Pierre Lévy esteve no Brasil para cumprir uma agenda voltada novamente para a educação. Desta vez ele visitou a Fiocruz, onde fez a conferência Educação e comunicação, desafios para uma cultura de responsabilidade de colaboração em redes, no Seminário Educação, Saúde e Sociedade do Futuro, que ocorreu de 25 a 27 de agosto. Em entrevista à Agência Fiocruz de Notícias, Lévy aborda o papel da internet na educação, o impacto da revolução digital na comunicação e o destino da imprensa tradicional diante desse novo paradigma que emergiu com o advento da internet.

Quais são os principais desafios da “cultura de colaboração de rede” em matéria de educação e comunicação?

Pierre Lévy: Deve ser bem entendido que a "cultura da comunicação em rede" não pode ser feita sem uma boa educação: alfabetização, conhecimento de idiomas estrangeiros, história, geografia, etc. Antes de sermos capazes de pensarmos juntos, devemos compreender as referências básicas e aprender a pensar por nós mesmos. Claro, a educação na escola deve usar todas as ferramentas atuais (smartphones, tablets e computadores) conectadas à internet e praticar a aprendizagem colaborativa como nova norma no trabalho e na vida social.

No meio algorítmico, a comunicação torna-se uma colaboração entre pares para criar, categorizar, criticar, organizar, ler, promover e analisar os dados por meio de ferramentas algorítmicas. Não há mais nenhuma autoridade transcendente e é por isso que o pensamento crítico e a responsabilidade são tão importantes de serem desenvolvidos. Mesmo que as pessoas dialoguem e falem umas com as outras, o principal canal de comunicação é a própria memória comum, uma memória que todos transformam e exploram. Habilidades em análise de dados estão no cerne da nova alfabetização algorítmica. Veja minha página na Web para obter um exemplo disso: http://pierrelevyblog.com/Curation/
 
Em uma das suas entrevistas, o sociólogo e filósofo francês Edgard Morin afirmou que informação não é conhecimento. Algumas pessoas afirmam que estamos na era do conhecimento. No entanto, outras argumentam que a internet não é um grande meio de acesso ao conhecimento; mas sim um grande meio de acesso à informação. O que acha sobre isso? É possível transformar a informação em conhecimento, apesar do excesso de informação na internet?
 
Pierre Lévy: Vamos distinguir informação – que é uma representação explícita do conhecimento – e o conhecimento em si, que é a habilidade de viver para compreender situações, identificar problemas e resolvê-los. Do conhecimento, criamos informações, e de informações, podemos aumentar nosso conhecimento: é um ciclo. Se alguém diz: “há também muitos livros na biblioteca”, achamos que o cara não entendeu o que é uma biblioteca, e para que ela serve. Mas quando alguém diz que há muita informação na Internet, algumas pessoas têm a impressão de que ouviram uma palavra de sabedoria. Mas eles estão errados! Nunca há “muita” informação. O que ocorre é que você não sabe como selecionar suas fontes, como criar sua própria memória pessoal dentro dessa nuvem de informações, como organizá-la pelo sistema de categorização certo (tags, palavras-chave, etc.) e, finalmente, como analisá-la a fim de aumentar seu próprio conhecimento. Agora é verdade que as ferramentas atuais para procurar informações e automatizar sua análise são limitadas. Mas estamos apenas no início da revolução algorítmica. Finalmente, gostaria de lembrar aos nossos leitores que a Internet não é apenas um grande caótico banco de dados em frente ao qual você se sente isolado e indefeso, mas também um canal de comunicação de muitos para muitos, um meio social onde as pessoas podem ajudar umas as outras a encontrar e analisar as informações a fim de aumentar seus conhecimentos.

O senhor diz que estamos atualmente vivendo uma revolução maior do que a invenção da prensa e que houve um salto na produção e disseminação do conhecimento. Qual o impacto disso no campo da ciência e da saúde?

Pierre Lévy: A invenção da escrita, cinco mil anos atrás, levou a um aumento do acúmulo de memória social e ao surgimento de novas formas de conhecimento. A revolução da imprensa, e depois da mídia eletrônica, contribuiu para o surgimento do mundo moderno, com seus Estados-nação, indústrias e suas ciências naturais matemáticas experimentais. Foi apenas na cultura tipográfica, no século XVI, que as ciências naturais tomaram a forma da qual desfrutamos atualmente: observação ou experimentação sistemática e teorias baseadas no modelo matemático. Da decomposição da teologia e filosofia emergiram as  ciências sociais e humanas. Mas nesta fase a ciência humana ainda era fragmentada por disciplinas e teorias incompatíveis. Além disso, suas teorias eram raramente matematizadas ou testáveis.

Estamos agora no início de uma quarta revolução, onde uma “infoesfera” interconectada e onipresente é repleta de símbolos – ou seja, de dados – de todos os tipos (música, voz, imagens, textos, programas, etc.) que estão sendo transformados automaticamente por algoritmos. Com a democratização da análise de mega dados, as próximas gerações verão o advento de uma nova revolução científica... mas desta vez será nas ciências sociais e humanas. A nova ciência humana será baseada na riqueza de dados produzidos por comunidades humanas e um crescente poder da computação. Isto levará a inteligência coletiva reflexiva, onde as pessoas vão se apropriar da análise de dados e onde os sujeitos e objetos de conhecimento serão as próprias comunidades humanas.

Nas ciências da saúde, pesquisadores criam grandes bancos de dados on-line comuns, eles colaboram através de seus blogs, através de plataformas de compartilhamento e através de meios de comunicação sociais especializados. As pessoas comuns têm acesso a um monte de dados on-line sobre saúde e participam de plataformas contribuindo para conversações sobre temáticas relacionadas à saúde.

No futuro, as pessoas serão capazes de navegar em mundos virtuais representando o estado e a evolução da saúde pública. Esses mundos virtuais interativos mostrarão a relação causal entre as principais variáveis relacionadas à saúde. Eles ajudarão os cidadãos, os especialistas, as instituições de saúde e os governos a compartilhar os mesmos «mapas», a fim de entender suas respectivas posições e interações  e de escolher entre diferentes opções.

Com o advento da internet, estamos passando por um novo paradigma no campo da comunicação. Mídias sociais se tornaram cada vez mais uma fonte de informação e têm substituído os veículos de comunicação tradicionais. Isto tem trazido muitos desafios para a mídia off-line. No Brasil, por exemplo, alguns veículos de comunicação têm enfrentado graves crises financeiras e alguns logo se tornarão extintos. O senhor acha que será o fim da mídia tradicional?

Pierre Lévy: A primeira indústria que foi claramente interrompida pela Internet foi a indústria musical. O e-mail substituiu a letra do manuscrito. Agora temos a "economia colaborativa" que rompe a indústria hoteleira (Airbnb) e a indústria do táxi (Uber). Em última análise, muitos setores econômicos serão transformados ou eliminados pela evolução as comunicações. Vamos lembrar que, desde o século 18, tem havido muita ascensão e queda de indústrias e que a revolução da comunicação não retardará esse ritmo, muito pelo contrário! Tenho certeza de que ainda vai haver "indústrias de notícias" no futuro, mas não haverá mais jornais. Além disso, não haverá mais rádio e televisão como conhecemos. Estes meios não-interativos serão integrados às maiores indústrias que estarão centradas na internet.

Com relação à educação, o Brasil ainda está longe do nível de outros países. Como o senhor acha que este problema pode ser resolvido com a ajuda da internet?

Pierre Lévy: A Internet não é uma solução mágica. Ela nunca substituirá o entusiasmo, o trabalho e as políticas públicas sólidas. Se o povo brasileiro colocar a educação no topo das suas prioridades políticas, o uso da internet poderá ser muito benéfico. Deveria haver wifi e banda larga gratuitos nas grandes cidades e nas áreas pobres. Todas as escolas devem ter Wi-Fi e  acesso aberto à Internet. Professores e alunos devem ser incentivados a partilhar experiências e recursos. O pensamento crítico e as habilidades na análise de dados deveriam ser ensinados no segundo grau. Deve se evitar a criação de comunidades fechadas e redundantes (portais) e devem ser usadas as atuais mídias sociais e o software livre.

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