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Em aula inaugural sobre ‘questão indígena’, Fiocruz se filia à SBPC


20/04/2022

Ricardo Valverde (Agência Fiocruz de Notícias) e Isabela Schincariol (Campus Virtual Fiocruz)

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A Fiocruz promoveu, nesta terça-feira (19/4), a aula inaugural do seu ano acadêmico. O evento teve como destaque a conferência Duzentos anos da “questão indígena”, proferida pela antropóloga luso-brasileira Maria Manuela Carneiro da Cunha, uma referência nos estudos sobre etnologia e antropologia histórica e há décadas militante do direito dos povos indígenas do Brasil. Antes da aula inaugural, ocorreu a cerimônia de filiação da Fiocruz à Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).

Fiocruz promoveu, nesta terça-feira (19/4), a aula inaugural do seu ano acadêmico (foto: Peter Ilicciev)

 

"A filiação à SBPC é institucional, porque participantes somos desde a origem, e com muita satisfação", salientou a presidente da Fiocruz, Nísia Trindade Lima. Ela disse que foi uma alegria promover o ato no dia da aula inaugural da Fiocruz, primeiro evento semipresencial desde o início da pandemia de Covid-19, destacando ainda o retorno, gradual e seguro, dos estudantes aos campi da Fiocruz para aulas presenciais. Nísia ressaltou que o pesquisador emérito Renato Cordeiro, da Fiocruz, foi fundamental nesse processo, como conselheiro da SBPC, assim como a secretária regional da SBPC, Lígia Bahia. A presidente também destacou a importância de pensar nos jovens, tanto os pesquisadores quanto os trabalhadores da saúde. “Pensar nos jovens e no seu lugar na ciência, uma vez que estamos enfrentando um problema de evasão, não apenas de cérebros, mas de compromissos, afetos fundamentais para a ciência brasileira”.

Nísia sublinhou que “nosso trabalho tem como objetivo uma ideia central: a ciência e a saúde em defesa da democracia e da soberania. Por essa razão, acolhemos de forma especial nossos estudantes e docentes no dia de hoje e deixamos esta mensagem nesta aula inaugural que enfoca os povos indígenas: é preciso considerar a diversidade como um valor central para a construção de um país democrático e soberano”.

O presidente da SBPC, Renato Janine Ribeiro, que participou de forma virtual do encontro, elencou uma série de homenagens: ao incansável trabalho da Fiocruz em defesa da saúde e da ciência; à corajosa condução de Nísia à frente da instituição; ao professor Haity Moussatché, um dos pesquisadores da Fiocruz que sofreu com o rude golpe do Massacre de Manguinhos na década de 1970 e, especialmente, por ter sido um dos fundadores da SBPC e, portanto, representando a filiação celebrada entre as instituições; por fim, uma homenagem a Renato Balão Cordeiro, pesquisador da Fiocruz e conselheiro da SBPC, que se empenhou para o desenvolvimento da categoria "Sócios Institucionais da SBPC", resultando na filiação da Fundação.

O vice-presidente da SBPC, Paulo Artaxo Netto, lembrou que as trajetórias de ambas as instituições foram paralelas ao longo das décadas na luta pela ciência, saúde da população e pela redução das desigualdades sociais. No entanto, segundo ele, com foco em um prisma futuro, essa associação será extremamente importante para o país. "Não será uma tarefa fácil. Precisaremos muito mais do que estar associado. Todas as instituições que querem ver um Brasil mais justo, menos desigual, com mais saúde, mais ciência e mais educação precisarão trabalhar juntas, e devemos começar já! A SBPC está renovando suas forças para que, junto com a sociedade civil e a comunidade científica, possamos trabalhar na reconstrução de um Brasil melhor!", afirmou.

"Assinar essa filiação institucional significa que caminharemos juntos no sentido de enfrentarmos os desafios do presente e do futuro, entre os quais eu destaco a importância de pensarmos nos jovens", pontuou a presidente da Fiocruz. Assinaram o termo Renato Janine, Paulo Artaxo, Nísia Trindade e a vice-presidente de Educação, Informação e Comunicação da Fiocruz, Cristiani Machado. Segundo Nísia, "é simbólico termos a assinatura dessa vice na filiação, pois a educação, a informação e a comunicação são dimensões também do fazer científico da Fiocruz!".

Retorno presencial e permanência dos estudantes

A coordenadora-geral de Educação da Fiocruz, Cristina Guilam, deu boas-vindas aos estudantes e anunciou o Auxílio à Permanência do Estudante, voltado aos alunos de pós-graduação de cursos stricto sensu. Segundo ela, esse é mais um importante passo da instituição no sentido da inclusão e do apoio ao discente em situação de vulnerabilidade. A ação integra uma ampla política – e um compromisso democrático – da Fiocruz relacionada a ações afirmativas.

Além de Cristina Guilam e de Nísia Trindade, a mesa de abertura da aula inaugural contou com a participação da vice-presidente Educação, Informação e Comunicação, Cristiani Vieira Machado, da presidente do Sindicato Nacional dos Servidores da Fiocruz (Asfoc-SN), Michelly Alves, e do vice-coordenador da Associação de Pós-Graduandos da Fiocruz (APG-RJ) e doutorando do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), Jacks Bezerra. Ele enalteceu os esforços dos alunos da casa que permaneceram estudando, pesquisando, exaltando a ciência brasileira e a Fiocruz e defendendo suas teses e dissertações em meio aos últimos dois anos de pandemia.

Cristiani Machado também saudou trabalhadores, docentes e especialmente os estudantes, afirmando que a Fiocruz está não somente de portas abertas, mas também de braços abertos para todos. E, de forma muito especial, para aqueles que passaram por todo seu curso de maneira virtual. "Vocês poderão estar conosco presencialmente para assistir às aulas de caráter eletivo, acompanhar as disciplinas... estaremos aqui para recebê-los", disse ela, entusiasmada.

Aula inaugural

Nísia introduziu a temática escolhida para a aula inaugural de 2022 da Fiocruz, reforçando que povos e sociedades indígenas e tradicionais tiveram seus direitos garantidos pela Constituição brasileira de 1988, mas ainda precisam tê-los reconhecidos na prática: "A trajetória para a superação das desigualdades no Brasil considera a diversidade como um valor central a ser respeitado. Para que, de maneira efetivamente democrática, possamos trilhar o caminho de um outro futuro para o nosso país".

Autora de diversos livros e uma das grandes estudiosas da história e cultura dos povos indígenas no Brasil, Maria Manuela da Cunha é professora emérita da Universidade de Chicago, onde trabalhou, e dá aulas na Universidade de São Paulo. Ela fez um histórico da relação entre os europeus que chegaram às Américas e os povos indígenas, desde o período colonial aos dias de hoje. Segundo ela, a palavra “questão”, usada no título da aula inaugural, é no sentido de esse ser um tema que tem uma longa história, atravessando os últimos cinco séculos e tendo como ponto de partida os impactos da descoberta do continente.

“O achamento [descoberta] da América trouxe questões para a Igreja, o direito e a filosofia”, afirmou Maria Manuela. Ela citou o frei dominicano espanhol Francisco de Vitória como um dos primeiros defensores, ainda no século 16, logo depois da chegada dos navegadores europeus à América, dos direitos dos povos indígenas. O religioso teve uma pregação humanista, que questionou a legitimidade da conquista europeia das Américas, mesmo que fosse para combater o paganismo ou o canibalismo, e sustentava que os indígenas não eram seres irracionais. Para Vitória, os monarcas europeus e o Papa não tinham direito de controlar ou dividir as terras dos habitantes originais. Segundo o frei, como os espanhóis reagiriam se um grupo de indígenas chegasse ao seu país exigindo o controle do território e o dividindo?

A antropóloga ressaltou que uma das questões da época, a respeito da qual debatiam teólogos e filósofos, era sobre se os indígenas tinham alma e se eram seres humanos. A bula (documento) Sublimis Deus, emitida pelo Papa Paulo III em 1537, deixava claro que os índios são homens, capazes de compreender a fé cristã, e condenava a escravidão desses povos. A bula também abria caminho para a catequização dos povos das terras descobertas, a partir, no caso do Brasil, de 1549, quando começa de fato a colonização do território. Na época, outra questão discutida era como cotejar a existência dos povos indígenas com a Bíblia, já que não são mencionados nas Escrituras. Uma das possibilidades foi relacioná-los às tribos perdidas de Israel.

Do mesmo século 16, a conferencista citou o escritor, jurista e filósofo francês Michel de Montaigne, um humanista que usou a descoberta desses povos das terras ocidentais para criticar a França de sua época, que sofria em guerras religiosas fratricidas. Montaigne aproveitou o contato com três indígenas tupinambás levados à França para fazer um contraponto entre os seus compatriotas e suas instituições e os indígenas. “Montaigne chegou a conversar com eles, auxiliado por um empregado que havia estado no Brasil e serviu de intérprete no diálogo”. Curioso e sem um pingo de superioridade, o filósofo comentava que os indígenas permitiam enxergar o absurdo de certos hábitos e crenças da sociedade europeia.

Maria Manuela também descreveu as questões que surgiram após o início da colonização, quando três grupos de interesse distintos passaram a atuar nos territórios indígenas: a Coroa portuguesa, os missionários jesuítas e os novos moradores (os colonos). E essas relações se davam em constantes conflitos, que também eram agravados pela ação de outros europeus, como os franceses, que intencionavam fundar colônias no Brasil. Volta e meia algum povo indígena se aliava a algum grupo europeu para guerrear e conquistar territórios.

A professora discorreu ainda sobre a ação do marquês de Pombal, primeiro-ministro de Portugal que em 1755 proclamou a libertação dos indígenas em todo o Brasil. Em uma só decisão ele agiu contra os proprietários de indígenas escravizados e os jesuítas, que dirigiam a vida das comunidades indígenas nos aldeamentos. Outras iniciativas de Pombal foram as de proibir a discriminação aos indígenas e elaborar uma lei favorecendo o casamento entre eles e portugueses. Ele também criou o Diretório dos Índios, para substituir os jesuítas na administração das missões.

José Bonifácio, o Patriarca da Independência, também foi lembrado por Maria Manuela. Bonifácio tinha um projeto de integração dos índios à sociedade, por meio de catequese e educação. Para ele, essa integração seria feita pela mestiçagem, que tonaria possível a criação de uma cultura comum, na qual, de acordo com suas palavras, prevaleceria o elemento branco e civilizador.

Maria Manuela recordou a atuação dos positivistas, que no final do século 19 tanto inspiraram os líderes do movimento republicano. “Eles tinham ideias bastante incomuns para a época e chegaram a propor, na Assembleia Constituinte de 1891, que elaborou a primeira Constituição da República, a instalação do que chamaram de ‘Estados Confederados Ocidentais’, que seriam ocupados pelos povos indígenas. O objetivo era  garantir a esses povos a proteção do Governo Federal contra qualquer violência, contra os povos indígenas e seus territórios. E os territórios não poderiam ser atravessados sem o prévio consentimento dos indígenas, pacificamente solicitado e pacificamente obtido”. Para os positivistas, as populações indígenas estavam no primeiro estágio mental da Humanidade e por isso precisavam de amparo e proteção para que pudessem alcançar a civilização. O projeto, no entanto, não prosperou. Não faltavam, na época, vozes que defendiam o extermínio dos índios que resistissem ao avanço da “civilização”.

Um pouco mais tarde, em 1910, foi criado o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), vinculado inicialmente ao Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio, e que depois passou pelo Ministério do Trabalho (1930-34), o Ministério da Guerra (1934-39), por meio da Inspetoria de Fronteiras, voltou ao Ministério da Agricultura (1940) e depois passou a integrar o Ministério do Interior até sua extinção, por corrupção, em 1967. Poucos anos depois da criação do Serviço, o Código Civil de 1916 estabeleceu a relativa incapacidade jurídica dos indígenas e o poder de tutela do SPI (da mesma forma que eram tutelados os adolescentes e as mulheres casadas). Era então corrente a ideia de que os indígenas eram seres em estado transitório, destinados a tornarem-se trabalhadores rurais ou proletários urbanos. Essa noção de tutela dos indígenas só foi abolida em 2002, com o novo Código Civil.

Maria Manuela encerrou sua conferência afirmando que os povos indígenas “não são o passado, e sim o futuro”. Segundo ela, todos os estudos recentes mostram que as áreas de florestas controladas por povos indígenas são as mais preservadas, no Brasil e no mundo, como também atestam os documentos dos painéis sobre mudanças climáticas da ONU. “A agricultura e o cultivo da terra feito pelos indígenas já eram modernos séculos atrás. E estima-se que cerca de 10% da Floresta Amazônica tenha origem antropogênica, ou seja, cerca de 700 mil quilômetros quadrados. É muita terra”. Ela citou ainda o arqueólogo Eduardo Neves, que ao rebater críticas de que os indígenas não construíram nenhuma obra de impacto disse que “a Floresta Amazônica é a nossa pirâmide”.

Ao final da aula inaugural, foram sorteados livros da coleção Saúde dos Povos Indígenas, da Editora Fiocruz. Confira a íntegra do evento: 

*Colaboração: Ciro Oiticica (Agência Fiocruz de Notícias)

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