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Entrevista: “Sistemas sociais e de saúde também são negligenciados”, diz presidente do DNDi


15/06/2016

André Costa (Agência Fiocruz de Notícias)

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Marcel Tanner é presidente do conselho executivo da Iniciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas (DNDi, na sigla em inglês), organização sem fins lucrativos de pesquisa e desenvolvimento de medicamentos para doenças negligenciadas. Trabalhando de forma colaborativa com órgãos públicos, centros de pesquisa e a indústria, o DNDi se orienta a partir das necessidades dos pacientes, e já desenvolveu novas formas de tratamento para doenças como a leishmaniose, a doença de Chagas, a doença do sono (tripanossomíase humana africana), a malária, e o HIV pediátrico.

Marcel Tanner esteve na sede da Fiocruz, em Manguinhos, no Rio de Janeiro, para reunião do conselho executivo do DNDi (Foto: Peter Ilicciev / CCS).
 

Na primeira semana de junho, Tanner, que também é presidente da Academia Suíça de Ciências, diretor do Instituto Federal de Tecnologia da Suíça e professor de epidemiologia e parasitologia médica na Universidade de Basel esteve na sede daFiocruz, no Rio de Janeiro, onde foi realizada a reunião do Conselho Executivo do DNDi. A Fundação e a iniciativa de desenvolvimento de medicamentos para doenças negligenciadas são parceiras de longa data – a Fiocruz foi uma das sete instituições que ajudaram a criar o DNDi, em 2003, e hoje atua tanto na pesquisa quanto na produção de medicamentos para doenças negligenciadas. O vice-presidente de produção e inovação em saúde da Fiocruz, Jorge Bermudez, também tem um assento no Conselho Executivo da entidade. Na conversa abaixo, Tanner fala sobre doenças negligenciadas e da importância do apoio governamental à pesquisa e da Fiocruz para o DNDi.

Agência Fiocruz de Notícias: Por que o DNDi foi criado? Quais são as principais áreas de atuação da organização?

Marcel Tanner: Se você examinar o DNDi, encontrará sobretudo três frentes de atuação: 1) a construção de um sistema de pesquisa e desenvolvimento de novas drogas; 2) a distribuição de drogas para aqueles que mais precisam; 3) uma nova abordagem para o desenvolvimento de drogas e para dar acesso a essas drogas às populações. A organização foi criada a partir da necessidade de atender a doenças, populações e sistemas de saúde negligenciados ao redor do mundo. Estes dois últimos aspectos são muito importantes, porque nunca são apenas doenças, mas também sistemas sociais e de saúde que são negligenciados.

Para combater estas doenças, não apenas advogamos em favor da causa, mas também nos esforçamos para dar acesso a tratamentos, e também para construir um sistema de pesquisa e desenvolvimento de medicamentos, isto é, trabalhamos para não apenas desenvolver um medicamento, mas toda uma rede que possa atender às necessidades dos que mais precisam das drogas. E alcançamos bastante coisa até aqui.

AFN: Quais são as principais realizações do DNDi nos 13 anos desde sua fundação?

Marcel Tanner: Nossas realizações começaram com as drogas contra a malária. Ajudamos a promover tratamentos que salvaram milhões de vidas, e a prevenir milhões de transmissões. Dois tratamentos estão entre essas ações, incluindo o ASMQ, desenvolvido em parceria com o Instituto de Tecnologia em Fármacos (Farmanguinhos/Fiocruz). Poderíamos falar também em nossas ações contra a tripanossomíase africana (doença do sono), a doença de Chagas e a leishmaniose. Essas três doenças ainda são proeminentes – no contexto da América Latina, as doenças de chagas e a leishmaniose têm um peso relevante, não apenas no país onde estamos, mas em muitos outros. Se pensarmos na doença do sono, é uma doença cujo tratamento envolvia drogas muito antigas e perigosas, de mais de 50 anos. A cada 1.000 tratamentos com essas drogas, você matava dez pessoas. E desenvolvemos um tratamento seguro que pode levar apenas dez dias, sem envolver injeções – na verdade, em alguns casos, apenas um dia de tratamento é necessário. Em relação à doença de Chagas, ajudamos a promover uma droga voltada especificamente para crianças – adaptamos a formulação da droga para uma formulação pediátrica. Isto envolve adaptar a substância à fisiologia da criança, entre outros. Quanto à leishmaniose, uma combinação de dois tratamentos que lançamos se tornou o principal tratamento utilizado contra a doença no Leste da África. E ainda trabalhamos também desenvolvendo medicamentos para o HIV pediátrico.

AFN: Como as doenças negligenciadas se relacionam à pobreza?

Marcel Tanner: As doenças negligenciadas estão presentes em populações muitas vezes marginalizados, e são males para os quais ainda não temos tratamentos. Você pode imaginar que, se alguém tem uma doença crônica ou aguda, esta pessoa se torna menos produtiva. E essas pessoas já estão em ambientes pobres, e o problema se torna ainda mais sério. A doença se torna um problema ainda mais substancial no sustento da casa. Se você imaginar as crianças, ela começa a ter um peso sobre as famílias. Se você melhorar as doenças, você consegue melhorar a condição de sustentação da família. E isto gera um dilema: a pobreza vem antes da doença, ou a doença vem antes da pobreza? Mas deve haver o contexto. E, se você puder fazer alguma coisa contra as doenças, você com certeza melhora a situação das casas. E isso pode acontecer em qualquer lugar, não estão apenas em áreas isoladas, mas também em grandes centros, como aqui no Rio de Janeiro, por exemplo. Temos aqui as favelas, áreas negligenciadas. Temos uma grande desigualdade nesta bela cidade. Elas estão presentes também cada vez mais em países desenvolvidos, onde há focos de populações negligenciadas.

AFN: Você poderia falar um pouco do modelo alternativo para o desenvolvimento de drogas do DNDi, voltado para os pacientes?

Marcel Tanner: Não temos uma única abordagem. Nosso papel envolve unir os atores, administrar os recursos e coordenar as diferentes ações dos parceiros ao longo do processo.  Isso inclui um enfoque em ciência e inovação, e envolver várias áreas do conhecimento – químicos, pediatras, cientistas sociais. Iremos nos aproximar da indústria para o desenvolvimento de uma droga, de um fundo privado para outra, e ainda do setor público.  Mas não há receita mágica: um tipo de acordo que pode funcionar para uma situação, pode não funcionar para outra. Sempre passamos muito tempo pensando em caminhos que podem funcionar, em modelos alternativos. Utilizamos por exemplo drogas que estão sendo desenvolvidas cuja pesquisa foi interrompida, ou medicamentos cujas patentes já expiraram, ou drogas que eram usadas para uma doença para tratar outra. Não nos restringimos a um modelo. O importante é sempre descrever muito bem os papéis e as responsabilidades.

AFN: Qual a importância do Brasil e da Fiocruz para o DNDi?

Marcel Tanner: O Brasil foi pioneiro em diversas iniciativas do DNDi, em particular a Fiocruz. O país foi o primeiro a integrar o DNDi, e a Fiocruz, um dos sete parceiros originais. Não fazemos acordos com países, mas com organizações. E foi assim que o DNDi foi construído, tendo áreas impactadas por doenças, e organizações que pudessem atuar como plataformas para combatê-las. O Brasil tem um papel importante porque, na Fiocruz, além de termos os cientistas, também há a parte da produção, em Farmanguinhos. Temos assim toda a cadeia necessária para a inovação, para a aplicação e para a produção. Não basta desenvolver o medicamento, também é preciso dar acesso, distribuí-los.

AFN: Recentemente o Brasil passou por uma mudança de governo, e uma das primeiras medidas do presidente interino foi a extinção do Ministério da Ciência e Tecnologia. Qual é o papel do governo para financiar pesquisas complexas em ciência e inovação?

Marcel Tanner: É essencial. Nenhum país fará qualquer progresso sem esse tipo de investimento. Se o Brasil quiser ter um papel proeminente e se manter como dos líderes dos Brics, é mais do que recomendável continuar a financiar os investimentos em ciências. Não apenas para as doenças negligenciadas, mas para as mais urgentes questões de saúdes públicas no país. Foi para isso que a Fiocruz foi criada. Se o governo atual pensa em reduzir investimentos nesta área, esta é uma visão míope, que custará a liderança no grupo dos Brics e na América Latina, tendo também efeitos sobre a população.

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