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Saúde e determinantes sociais no território federativo


17/05/2016

Renata Leite - equipe Brasil Saúde Amanhã

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"O futuro do setor Saúde depende de como a democracia e a federação brasileiras serão consolidadas”, afirma Patricia Tavares Ribeiro, coordenadora do Centro de Estudos, Políticas e Informação sobre Determinantes Sociais da Saúde, da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz). Para a pesquisadora, a Saúde não pode ser pensada separadamente da política, do contexto histórico, social, cultural e territorial. Nesta entrevista, ela analisa o que precisa avançar, hoje, para que a equidade e a universalidade do Sistema Único de Saúde (SUS) se mantenham como princípios na agenda das políticas de saúde no futuro. "Nos próximos 20 anos, um caminho a explorar pode ser o de soluções de governança territorial na federação brasileira", defende.

Em que contexto emerge o debate sobre os determinantes sociais da saúde e quais as suas contribuições para o planejamento de longo prazo do setor?

 A abordagem aos determinantes sociais da saúde parte da compreensão de que o processo saúde-doença é socialmente determinado e historicamente situado no tempo e no espaço. Os determinantes sociais da saúde, portanto, não são universais e atemporais. Assumem configurações diferentes de acordo com o momento e a localização. Esta abordagem não é uma novidade, como a entrada recente do tema na agenda internacional, por meio da Organização Mundial de Saúde, faz parecer. Já na origem da saúde pública, nos séculos XVIII e XIX, abordagens ao social configuraram práticas relacionadas à medicina de Estado, à medicina urbana e à medicina social.

 Nas décadas de 1960 e 1970, o pensamento latinoamericano se mobilizou em torno desta temática no contexto de críticas ao padrão de intervenção do Estado na área social e na Saúde, próprio dos regimes autoritários que caracterizavam os governos da região, padrão este produtor de importantes iniquidades. Daí resultou relevante produção científica que informou movimentos progressistas por reformas setoriais, como aconteceu no Brasil. O desafio, hoje, é compreender o momento histórico que estamos vivendo, e aprofundar o conhecimento sobre a produção social da saúde e da doença nas sociedades contemporâneas. A tarefa não é fácil, já que, nos últimos 30 anos, mudanças no ambiente, na economia, na sociedade, nos governos, nos Estados nacionais e na política concorreram para novas realidades locais que impactam o processo saúde-doença e a organização de repostas governamentais e sociais. Enfrentar essa tarefa é, a meu ver, condição para o planejamento de longo prazo. E já está se fazendo isso.

 Como o Brasil vem acompanhando essas tendências globais?

 A República Federativa do Brasil estabeleceu em sua Constituição Federal de 1988, progressista, o direito universal à saúde e o dever do Estado em assegurá-lo, na contramão das tendências liberalizantes de modernização e redução do papel e tamanho do Estado, dos anos 1980. Por outro lado, observa-se convergência, nos anos 1990, com as tendências internacionais de descentralização da ação governamental e participação social, na onda de redemocratização, de reestruturações administrativas e de revigoramento do discurso dos direitos humanos. O país vem ensaiando inovações na relação público-privado com propósitos de eficiência, caracterizadas por alguns autores como tendência à “economização” do setor público. Nesse sentido, acompanhou inovações na área de tecnologias da informação e comunicação, seja no que diz respeito a iniciativas de governo eletrônico, seja em relação à inclusão digital. Isto só para mencionar alguns aspectos que devemos continuar analisando.

 No que se refere à abordagem à determinação social da saúde na produção de políticas públicas, a Constituição Brasileira de 1988 adotou o conceito ampliado de saúde, colocando em perspectiva a interlocução com os demais setores governamentais e não governamentais na efetivação do direito à saúde. A intersetorialidade vem ganhando relevância no planejamento do SUS. Por outro lado, a sociedade, rearticulada em novas identidades coletivas, apresenta suas demandas específicas, exigindo respostas do Poder Público que considerem essa diferenciação. Negros, indígenas, povos do campo e da floresta, povos e comunidades tradicionais, grupos LGBT, entre outros segmentos, passaram a pressionar o Estado e as políticas do SUS de forma muito mais efetiva.

 O Brasil – e não há como deixar de destacar a importância da Fiocruz nesse processo – se posicionou e influenciou significativamente a inclusão da temática dos determinantes sociais da saúde nas agendas políticas governamentais nacionais e internacionais, mesmo que, na avaliação de alguns, ainda não suficientemente. Neste campo de produção científica, o país acompanha a tendência global recente de evidenciar e monitorar iniquidades em saúde e de construir capacidade de pesquisa na área. Todas essas mudanças precisam ser acompanhadas e suas implicações no presente e no futuro analisadas.

 Que ações e políticas devem ser implementadas hoje para, no longo prazo, equilibrar as desigualdades sociais e iniquidades em saúde no Brasil?

 Em primeiro lugar, é preciso que se reconheça e que se aprofunde o conhecimento sobre a natureza federativa do Estado Brasileiro, as relações intergovernamentais implicadas na gestão das políticas de Saúde e das políticas públicas em geral, o que isso impõe de autonomia e interdependência aos entes federados e o conceito de unidade na diversidade. Parece óbvio, mas não é. Nossa cultura política, de planejamento centralizado e ainda pressionado por nossa herança clientelista e patrimonialista, tem dificuldade de introjetar essa particularidade de nossa democracia. Só é possível atuar sobre iniquidades se  reconhecermos as diferenças territoriais e culturais que repercutem desigualmente nos padrões de saúde e adoecimento e no potencial de respostas públicas em cada lugar, em cada momento, no território nacional. E, no caso brasileiro, há que se levar em consideração o campo de atuação de cada nível político-administrativo da federação, sobretudo no âmbito local.

 Nesse contexto, é importante, por exemplo, que as políticas de saúde valorizem um conhecimento epidemiológico na ponta do sistema de saúde, a ser produzido onde os problemas acontecem, que torne possíveis leituras e análises territorializadas da situação de saúde e a emergência de soluções e intervenções adequadas a cada lugar, baseado nas práticas cotidianas das equipes de saúde, em sua interação com as comunidades onde atuam. Em ouros termos, investir na heterogeneidade e diversidade como referência para um planejamento setorial que tenha como prioridade a redução de desigualdades. Isso requer governos municipais fortalecidos na sua atuação dentro do SUS. E, ao mesmo tempo, é necessário o acompanhamento efetivo das realidades municipais pelos governos estaduais para a identificação das necessidades de cooperação intermunicipal e/ou de ação regionalizada das secretarias estaduais de saúde. Essa mudança requer investimento financeiro e seria uma importante contribuição ao debate sobre o financiamento setorial, que ocupa centralidade no debate político.

 O Centro de Estudos, Políticas e Informação sobre Determinantes Sociais da Saúde da Ensp/Fiocruz vem, desde sua origem, trabalhando no sentido de evidenciar as diferenças entre as grandes regiões do país, visando ao monitoramento das tendências das iniquidades em saúde e ao apoio a políticas e programas desenvolvidos pelos governos e sociedade civil para combatê-las. Neste momento, estamos atualizando as informações e aprimorando a metodologia.

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