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Cultura da superação provoca impactos à saúde de atletas de alto rendimento

Nadador se exercita na piscina, demonstrando muito esforço nas contrações do rosto

03/08/2016

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Por Adriano De Lavor/ Revista Radis*

Esforço físico, dor e repetição; dedicação extrema, pressão psicológica, frustração. O cotidiano de um atleta de alto rendimento está longe de se resumir às glórias do lugar mais alto do pódio. O caminho entre a descoberta e o prazer da prática esportiva e a conquista de medalhas e troféus é para poucos e exige uma rotina exaustiva de treinamentos, lesões e tratamentos, que nem sempre garantem recompensa para quem nele se aventura. A carreira de um atleta é quase sempre curta, desgasta corpo e mente e, para a grande maioria, deixa de herança apenas lembranças e problemas de saúde. No mês que antecedeu os Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro, Radis conversou com atletas e profissionais de educação física para descobrir qual a repercussão de tamanha “entrega” para a saúde destes profissionais e como eles se protegem dos “efeitos colaterais” do mundo das competições e da cultura da superação.

A jogadora de vôlei de praia Shelda Bedê sabe muito bem quanto custou para o seu corpo ser heptacampeã mundial e duas vezes vice-campeã olímpica. Se por um lado o saldo de títulos garantiu a inclusão de seu nome no hall da fama da modalidade, nos Estados Unidos, em 2010, as horas, dias e anos de treinamentos e competições em quadras de areia deixaram o débito de lesões nos joelhos, ombros, nas costas e no cotovelo. “Convivo com as dores normalmente, mas não consigo mais jogar”, contou a atleta à Radis. Aos 43 anos, 18 deles dedicados ao esporte profissional, ela lembrou que, nos últimos anos, mesmo com a carreira consolidada, ela treinava seis, sete horas diárias, sem contar o tempo das sessões de alongamento e fisioterapia. “Minha vida foi dedicada ao vôlei”, definiu a ex-atleta, que nas Olimpíadas do Rio vai atuar como comentarista de televisão.

Dois meses antes de entrar nas piscinas dos Jogos Paralímpicos, o nadador Clodoaldo Silva, 37 anos — que já anunciou sua aposentadoria, após a competição — ainda vivia a pressão dirigida aos campeões quando conversou com a Radis, em julho. Dono de 13 medalhas, o "Tubarão das Águas" (como é conhecido), esperança de ouro nas cinco modalidades que disputará, seguia uma rotina diária de treinamento que começava às 7 e meia da manhã e só terminava às 6 da tarde, seis dias na semana. Na cidade paulista de São Caetano do Sul, ele aproveitava a estrutura do centro especializado de treinamento paraolímpico, longe da família que vive no Rio de Janeiro, mas bem próximo de uma equipe de profissionais que inclui técnicos, nutricionistas, biomecânicos, fisioterapeutas, massoterapeutas e médicos. A preocupação não é em vão, disse Clodoaldo, que começou a nadar para melhorar sua qualidade de vida e hoje tem duas hérnias de disco diagnosticadas, graças ao esforço nas piscinas. Ele lembrou ainda que quase ficou de fora dos jogos de Londres, em 2012, por conta de uma lesão no ombro. “Tinha chances de medalha, mas não rolou”.

A pressão também é grande entre aqueles que vão estrear em Olimpíadas. Caso de Diogo Hubner, que no começo de julho comemorou sua convocação para a seleção brasileira de handebol. “Estou muito feliz! Olhar para trás e ver tudo o que passamos é fantástico. Mas queremos mais. Queremos melhorar a colocação do Brasil em Olimpíadas e fazer história”, declarou naquele momento, nas redes sociais. Ele relembrou das dores e dos momentos em que abdicou da vida em família em função do esporte e contou o que faz, dentro e fora das quadras, para proteger sua saúde e melhorar seu desempenho. Aos 33 anos, ele já se submeteu a duas cirurgias no ombro direito, uma no esquerdo, e mais duas no joelho esquerdo. “Foi um momento muito difícil da minha carreira, não sabia se seria possível voltar a jogar, mas deu tudo certo”, declarou, ao se referir à intervenção no ombro direito.

Também estreante, o judoca Rafael Buzacarini é outro que não descuida da preparação nutricional, psicológica e mental no período que antecede as competições. O lutador, de 24 anos, relatou não ter registrado lesões muito graves em sua trajetória, com exceção de uma luxação patelar, que o obrigou a operar o joelho esquerdo e o deixou quatro meses fora do tatame. “O corpo precisa estar forte e preparado para qualquer pressão nas competições”, opinou, revelando que ficar longe da família e enfrentar muitas reprovações ao longo da carreira foram os maiores sacrifícios que enfrentou para conquistar a tão sonhada vaga de competidor olímpico.

Equilíbrio emocional

Cuidados com a saúde são, na verdade, mais uma das inúmeras obrigações a serem cumpridas pelos profissionais do esporte, sejam estreantes ou experientes. Que o diga Felipe Claro, desde 2001 integrante da seleção brasileira de rugby. Aos 30 anos, 19 deles dedicados ao esporte, ele abriu mão da faculdade de publicidade e propaganda, enfrentou duas cirurgias no joelho e, em 2015, enquanto se preparava para os jogos do Rio, voltou a jogar apenas 59 dias depois de operar o tendão do bíceps. Para se proteger, investe em alimentação saudável, suplementação e complexos vitamínicos “para manter a imunidade sempre alta”. A nadadora Joanna Maranhão, medalhista em oito edições dos Jogos Pan-Americanos, destaca outro aspecto, pouco visível, mas não menos importante na preparação de um atleta: equilíbrio emocional. “A maturidade me deu longevidade na carreira. Você percebe os valores de suas escolhas, seus limites e como superá-los”, ensina a atleta, às vésperas de disputar sua quarta olimpíada. Ela disse não ter sofrido grandes lesões físicas ao longo de sua carreira, mas não esconde ter tido episódios de depressão e crises de pânico, hoje controladas “graças a terapia, medicamento e opções saudáveis”.

Aos 29 anos, Joanna tem um perfil diferente da maioria dos atletas de alto rendimento. Apesar da dedicação extrema e dos bons resultados obtidos, ela não esconde suas preferências políticas e se posiciona publicamente sobre temas polêmicos, como assédio sexual e pedofilia, redução da maioridade penal e casamento entre homossexuais. Em 2008, revelou ter sido molestada sexualmente pelo treinador, quando criança. Seu depoimento influenciou para que a Câmara dos Deputados aprovasse a Lei 12.650/2012, batizada de Lei Joanna Maranhão, que altera o Código Penal para que a contagem do prazo de prescrição nos crimes contra dignidade sexual praticados contra crianças e adolescentes comece a ser calculada a partir da data em que a vítima completar 18 anos de idade. Tamanha exposição não diminui o rendimento? Segundo ela, as questões pessoais não interferem em sua performance — o que não impede que, vez ou outra, ela seja repreendida por seu técnico, por estar mais “estressada”. “Não consigo ficar alheia a tudo e pensar somente em mim, na minha performance. Sou um ser humano complexo”, justifica.

Trabalhadores do esporte

São poucos os atletas que, como Joanna, expõem, publicamente, suas discordâncias com a lógica de desafio e superação imposta pelas competições de alto nível. Como estrelas do espetáculo, estes profissionais “fazem parte de uma estrutura de trabalho altamente injusta na qual o exultante sucesso econômico de uma elite minoritária mascara a situação de trabalho desfavorável da vasta maioria dos desportistas”, descrevem Edgard Matiello Júnior, Paulo Capela e Jaime Breilh, na apresentação do livro Ensaios alternativos latino-americanos de educação física, esportes e saúde, que organizaram em 2010. Na obra, eles criticam a lógica do esporte — onde “o importante mesmo é exigir rendimento desumano e superar os limites de realização de negócios multimilionários de empresas de capital transnacional” — e apontam para a repercussão desta visão na vida dos atletas, afetando sua saúde física e mental.

À Radis, Edgard Matiello Junior, que é doutor em Educação Física pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), avaliou que os atletas também são produtos. Em sua opinião, estes “trabalhadores do esporte” têm o direito de saber que estão praticando uma atividade profissional insalubre, assim como de se opor a praticar atividades nocivas a sua saúde. Ele citou como exemplo a experiência de jogadores de futebol brasileiros que são obrigados a participar da Copa Libertadores da América em países situados em regiões de altitude elevadas. “São situações obviamente destrutivas e o jogador não pode se negar a participar, ainda que fique sem fôlego, que desmaie dentro do campo ou precise de tubos de oxigênio”, assinalou, lembrando que o sujeito coloca sua vida em risco em nome da superação. Nestes casos — em que o esporte é encarado um negócio — Edgard advoga que as atividades físicas podem perder o caráter protetor da saúde e se tornar práticas destrutivas.

Também profissional de Educação Física, Rossman Cavalcante, mestre em Saúde Pública pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e professor da Universidade de Fortaleza (Unifor), avalia a situação sob outro ângulo. Pioneiro no treinamento de atletas de competição, incluindo a preparação física da dupla de vôlei de praia Franco e Roberto Lopes na conquista da medalha de ouro no circuito mundial, em 1994, e na conquista da vaga para disputar as Olimpíadas de Atlanta, em 1996, ele ponderou que para atingir o nível de alto rendimento é preciso cruzar a linha que separa a alta performance das questões de saúde. “Essa linha é estreita e cruzada várias vezes”, disse Rossman, argumentando que não há como atingir os parâmetros que se esperam de um atleta de “nível olímpico”, sem estressar determinadas estruturas — músculo-esqueléticas, cardiovasculares, metabólicas e até emocionais.

Genética X superação

Em um ponto os dois profissionais concordam: o número de atletas e ex-atletas de alto rendimento lesionados é altíssimo. Edgard cita o jogador de basquete Oscar Schmidt, que já declarou sentir dores horríveis e não conseguir ficar sentado muito tempo, sequer para dirigir seu carro; lembra de Marcelo Negrão, campeão olímpico de vôlei, que também reclama de dores constantes; e do jogador de futebol Liedson, que ao ser campeão pelo Corinthians declarou que “doía tudo, do pescoço para baixo”. Rossman avalia que o número só não é maior porque estes profissionais são privilegiados pela genética. “Nós, meros mortais, que praticamos exercícios e as vezes nos espelhamos nessas pessoas, não temos os atributos genéticos que nos propiciariam resultados sem aumentar muito o risco de machucar”, alerta.

Shelda tem um episódio que corrobora esta versão. Ela lembrou de um dos inúmeros Campeonatos Mundiais que disputou, quando machucou o cotovelo, mas continuou jogando, mesmo com as dores. Só descobriu um mês depois, quando voltou ao Brasil. “Por algum motivo a gente suporta a dor acima do normal”, acredita. “Faz parte da vida do atleta viver se cobrando por resultados”, argumenta. “O esporte vai provocando as lesões e a maneira de contorna-las é aguentando, porque o mesmo esporte que deteriora a saúde do sujeito coloca regras para que não tome analgésicos. Tudo em nome do rendimento”, critica Edgard, para quem a exigência, no mundo esportivo, não é humana.

Rossman alerta para o perigo que representa a “cultura da superação pela superação”, que extrapola a rotina dos superatletas e invade a vida dos praticantes de atividades físicas. Ele citou como exemplo a febre do crossfit [um programa de treinamento de força e condicionamento físico, de alta intensidade, que reúne movimentos de levantamento de peso, ginástica e condicionamento metabólico], que pode induzir as pessoas a acreditarem que são capazes de superar qualquer desafio, por meio de estratégias motivacionais. Isso faz com que o praticante amador da modalidade se submeta a esforços físicos cada vez maiores, sem que seu corpo esteja preparado para isso.

Edgard endossa a crítica: “O ser humano tem limites, mas o desejo de se superar não tem”, adverte, apontando que este sentimento é positivo e impulsiona a humanidade, mas se torna um risco quando se resume à ideia de que as conquistas dependem exclusivamente do esforço pessoal: “Isso é ótimo quando trabalhado em uma dimensão humana e não a favor dos interesses exclusivamente comerciais”, acredita. O professor se refere aos dividendos gerados em torno do esporte profissional, que inclui a promoção de megaeventos, a comercialização de produtos e até o interesse da mídia. Nesta engrenagem, ele enxerga que a “peça” menos valorizada é o atleta. Isso se reflete na disparidade de remuneração (em estudo publicado em 2010 ele apontou que, a despeito dos salários astronômicos pagos às estrelas do futebol no mundo, na realidade cerca de 90% dos jogadores brasileiros recebem menos que um salário mínimo mensal) e na vida pós-competições, para a qual poucos estão preparados.

Depois de 18 anos nas piscinas, Clodoaldo vem se preparando para o “segundo tempo” de sua vida, informando que não pretende ficar tão longe do esporte. Em sua contabilidade pessoal, ele afirmou que se sustenta graças aos patrocinadores e aos cachês recebidos por palestras motivacionais e revela que vem investindo na carreira de jornalista esportivo. O atleta comemora o reconhecimento conquistado por ele e os demais atletas paraolímpicos no país — o que em sua opinião, beneficia todas as pessoas com deficiência — e antecipa que seus planos são cursar comunicação social e retomar a experiência no rádio e na TV — ele apresentou programas nas rádios Bradesco Esporte FM e Band News FM, e na TV Bandeirantes, entre 2013 e 2015.

“Devo tudo o que tenho ao esporte”, declarou Shelda. Ela disse acreditar que sem o vôlei não teria conquistado e vivido tanto, com tão pouca idade. Em relação ao futuro, revela que o fato de ter parado de uma vez, em plena disputa de um Mundial, pesou psicologicamente, mas que se preveniu financeiramente investindo em imóveis e negócios; Diogo avaliou estar “mais perto do fim do que do começo” e manifestou o desejo de se manter próximo ao handebol; Joanna afirmou que a carreira de atleta a preparou para a vida, e que lidar com competitividade e pressão a deixaram mais madura para encarar o que vem pela frente; Rafael contou que planeja voltar a estudar e terminar a faculdade de Fisioterapia e passar “para os mais novos” o que aprendeu no judô. Felipe Claro vem se preparando, financeiramente, com duas empresas (uma delas produz material esportivo para o rugby; a outra, uma academia de treinamento funcional) e pretende voltar aos estudos, mas na área de Educação Física: “Quero fazer uso da bagagem e do conhecimento que o esporte me deu”, explicou.

*Reportagem publicada na Revista Radis de agosto de 2016

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