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"Atual sistema de acesso a medicamentos fracassou", diz Jorge Bermudez

Foto de Jorge Bermudez, vice-presidente de Produção e Inovação da Fiocruz

17/11/2016

André Costa (CCS). Foto: Divulgação

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Em setembro, foi divulgado o relatório final do Painel de Alto Nível da ONU sobre o Acesso a Medicamentos. Formado por quinze especialistas de várias partes do mundo, o grupo foi convocado em novembro de 2015 pelo então Secretário-Geral da ONU, Ban Ki-Moon, com o objetivo de propor soluções e medidas para melhorar o acesso a medicamentos.

O acesso da população mundial a medicamentos sofre restrições exorbitantes: a cada três pessoas, uma não dispõe dos medicamentos essenciais de que precisa. Cerca de 5,5 bilhões de pessoas não têm acesso a analgésicos, sofrendo ou morrendo de dor. Pacientes que precisam de tratamento para hepatite C na maioria dos países passam pela mesma situação, não recebendo tratamentos indispensáveis a suas vidas. O problema da falta de acesso afeta países pobres e ricos, sendo causado, principalmente, pelos crescentes custos das tecnologias de saúde e pela falta de novas ferramentas para solucionar recentes ameaças, como o ebola, zika e a resistência antimicrobiana.

A principal conclusão do relatório foi que a solução para este problema envolve um trabalho conjunto entre governos e indústria, desvinculando o custo de pesquisa e desenvolvimento do valor final dos produtos.

Um dos dois integrantes brasileiros do painel, o Vice-Presidente de Produção e Inovação em Saúde da Fiocruz, Jorge Bermudez, conversou com o Fiocruz Internacional sobre o tema.

P: O conhecimento científico passou por avanços significativos nas últimas décadas, com as possibilidades de tratamento se tornando muito mais numerosas do que há algumas décadas. Medicamentos de novas gerações tratam pacientes cujos prognósticos seriam fatais há alguns anos. E, ainda assim, centenas de milhões de pessoas que precisam de tratamentos efetivos e capazes de salvar vidas perecem por não falta de acesso. Por que isso acontece?

Bermudez: O primeiro motivo para isto é o atual regime de propriedade intelectual de medicamentos. A proteção  patentária gera um monopólio de vários anos e, com isso, a indústria impõe o preço que quer no produto, sem que tenhamos competição. O exemplo dos antirretrovirais, neste caso é muito claro. Quando começamos a ter produção genéricas desses remédios na Índia, o preço caiu de dez mil para trezentos dólares. Se você tem competição no mercado, consegue ter preços mais acessíveis. E a indústria de genéricos, quando obtém uma escala maior, consegue abaixar ainda mais seus preços. Um dos problemas, assim, é o regime de propriedade intelectual e de proteção patentária.

Outro ponto importante é a relação entre o custo e o preço. É preciso diferenciar o que é custo e o que é preço. Claro que temos investimento em pesquisa, pelo qual a indústria deve receber o retorno. Mas o exemplo da hepatite C é um exemplo muito claro de algo em que não houve o investimento em pesquisa. A Gilead (companhia farmacêutica) simplesmente comprou uma empresa farmacêutica com todo o seu portfólio de produtos e pôs estes produtos a 84 mil dólares por tratamento. Isso porque compraram a outra empresa por 12 ou 13 bilhões de dólares. Quer dizer, o preço do tratamento de hepatite não se deve a custos de investimento em pesquisa, mas sim porque precisam recuperar o que investiram para comprar a companhia.

 

P: Quais são as recomendações mais importantes do relatório?

Bermudez: O mais importante, em primeiro lugar, é que o relatório tem um foco muito central em direitos humanos. A polarização entre inovação e acesso foi muito trabalhada pelo painel. Não adianta ter um produto se, assim como acontece com todos os produtos para câncer lançados nos últimos três anos, ele custa mais de 100 mil dólares por tratamento. Isso quebra sistemas de saúde, a pessoa não pode pagar, o sistema não pode bancar. Não podemos ter inovação, se não tivermos o acesso do outro lado.

E também a ênfase para que para que não haja pressões a países que utilizarem flexibilidades dos acordos Trips, criando licenças compulsórias. É o caso recente de Vietnã e Colômbia: os governos destes países declararam que um medicamento é prioritário e que não podem bancar o preço que está exigido pela indústria, e com isso autoriza que haja produção a preço menor, pagando royalties a quem inventou o medicamento. O Brasil só se valeu do mecanismo uma vez, no caso da Aids. O antirretroviral consumia praticamente metade do orçamento: com a licença compulsória, conseguiu reduzir 10 ou 15 vezes o preço do medicamento. Isso feito também com outros produtos

Outra questão importante é o chamado delinkage: a desvinculação entre o investimento em pesquisa e o custo do preço do medicamento.

 

P: E de um ponto de vista político, qual é o significado do relatório?

Bermudez: É muito  importante que o relatório tenha ido ao Secretário-Geral das Nações Unidas, quer dizer, que tenha saído da Organização Mundial de Saúde (OMS). A cúpula das Nações Unidas hoje está debatendo acesso a medicamentos. Isto acontece, também, porque o acesso a medicamentos hoje não é mais um problema só de países pobres: Eua, Reino Unido, França e Alemanha dizem que não conseguem bancar determinados medicamentos para hepatite e câncer. Isso também está colocado pelo Secretário-Geral, que afirmou que o acesso é hoje um problema que atinge mundo inteiro.

 

P: A indústria alega que desvincular o preço dos medicamentos dos custos de pesquisa e desenvolvimento levaria à ausência de investimento sobre a saúde. O senhor e outros, por outro lado, defendem revisão nas atuais leis de propriedade intelectual. Qual deve ser o papel dos governos, neste novo regime?

Bermudez: Uma das questões mais enfáticas do relatório é justamente à relacionada à governança: quais devem ser as normas, para mudanças deste tipo. Uma das recomendações claras que mais têm aparecido desde a publicação é que os governos precisam assumir um papel fundamental. Não podem pegar este relatório e arquivá-lo: precisam ver quais são os seus papéis, assim como a indústria precisa ver qual é o papel dela. A sociedade civil sempre cumpriu seu papel,que é o de pressionar, mas quem tem realmente força para promover mudanças são governos. Muitas das pesquisas já são financiadas por governos. Nos EUA, o maior financiador de pesquisas é o governo, o NIH, assim como as universidades. Então estas pesquisas que as universidades ou os órgãos públicos promovem não deveriam gerar patentes para a indústria que recebe estas pesquisas e produz medicamentos.

P: E como a indústria pode ser remunerada por seus investimentos em pesquisa?

Bermudez: Deveria haver um fundo que remunere a pesquisa, mas também a audite, porque boa parte dela tem custos ligados a publicidade. O que gira em torno do mercado farmacêutico permite tranquilamente constituir um fundo. Temos um mercado que gira em torno de um trilhão de dólares. Desses recursos, a maioria provém de investimentos de governo, como no Brasil, onde é o governo quem banca a maioria dos investimentos porque é o SUS que garante a saúde de direito de todos.

De alguma maneira, é preciso realizar uma convenção mundial que determine a criação desse fundo, como foi feito com o tabaco há alguns anos. Este fundo deve remunerar a indústria por fazer investimento em pesquisa, e não com que a indústria tenha que ser remunerada pelos custos do medicamento. Este fundo deve ser gerido pelas Nações Unidas ou pela OMS ou outra agência internacional, e deve auditar o que a indústria diz que investiu em pesquisa, e que a remunere de acordo com isso. Estes custos, no entanto, não devem ser passados ao preço dos medicamentos.

P: Isto leva a outro ponto do relatório, que é a maior necessidade de transparência na indústria.

Bermudez: Há uma necessidade de transparência em tudo: em custos de ensaios clínicos, nos resultados desses ensaios... Hoje a indústria publica o que ela quer. Ela financia os ensaios clínicos, que são necessários para a ida ao mercado, e só divulga o que quer.  Precisamos saber quais são os custos associados a ensaios clínicos, quanto paga ao pesquisador, quanto paga à universidade que participa, etc.  Recentemente, o senado americano inclusive fez toda uma investigação e chegou à conclusão de que o lançamento dos produtos de hepatite c levou em consideração tudo, menos as pessoas que precisam do medicamento. Concluiu-se que houve um lucro excessivo e que não justificava  critério com o qual se fixou o preço do medicamento.  
 

P: Desde sua publicação, o relatório foi chamado de marco. O governo da Colômbia, por exemplo, manifestou-se de forma extremamente positiva à publicação. Por outro lado, o Departamento de Estado americano questionou o texto, assim como a indústria, que fez crítica parecida. Ongs, por sua vez, falaram o contrário, que é um relatório tímido. Como o senhor vê estas reações?

Bermudez: Primeiro acho que foi um avanço. Conseguimos levar ao mais alto nível das Nações Unidas um assunto que é próprio à OMS. Conseguimos deixar coisas claras, que governos não podem se omitir, que países ricos não podem pressionar países pobres para fixar acordos mais restritivos que o acordo Trips permite, se avançou em transparência e governança, que a ONU precisa voltar a discutir o assunto em 2018. Quando se fala que foi tímido, é um pouco como nosso comentário que eu e outros colegas fizemos em adendo ao relatório: ele a avançou muito, mas temos sensação de que poderia ter ido além. Porque o que está presente aqui já apareceu também em outros relatórios, embora talvez com menos ênfase. Aqui ficou muito enfatizada esta necessidade de que impedir que haja pressões, ameaças e retaliações de medidas do governo. Ficou muito clara a necessidade de que se respeite a soberania de cada país de colocar suas prioridades e de definir suas normas. Mas realmente, se queremos assegurar acesso no mundo inteiro, teríamos que considerar se o atual sistema falhou ou não. E acho que, do ponto de vista de assegurar o acesso, ele falhou. É um sistema falido, que não está respondendo a quem precisa. Ele responde a quem desenvolveu um medicamento novo e tem uma proteção patentária. Temos que rever esse sistema porque já se viu que ele não facilita nem assegura acesso, apenas assegura remuneração. Se, como disse o secretário-geral Ban Ki-Moon citando a Agenda 2030, não queremos deixar ninguém para trás, temos que ser ousados. Faltou ousadia de colocar algumas questões, que não precisam ser implementadas de imediato, mas cuja adoção precisa ser pensada. Questões que precisam ser colocadas já, como a necessidade de retirar a proteção patentária, para se entender com que normas, de que maneira se faz isso no futuro.

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